DIÁRIO DE CAFÉ DE LUÍS MIGUEL (fragmento)

“Violência na atmosfera. Um puto a escapulir-se por entre as pernas da vóvó. Agora são nove e meia da noite, um tipo qualquer arranca numa moto potente e levanta uma nuvem de poeira alcatroada que me deixa surdo. O que é que eu quero? Quero uma cerveja. Que idade tens tu? Catorze? É uma boa idade. És uma boa garota. Queres ouvir uma história? (Se calhar não me lembro de nenhuma...) Traz-me primeiro a cerveja e depois já se vê isso. Deixa-me olhar à volta. Agora.
Mas não há tempo: estou na primeira mesa da esplanada e vem um amigo meu sentar-se a meu lado e falar interminavelmente da vida dele, depois de perder dez segundos a perguntar-me pela minha. Oh, tudo bem, não te preocupes — digo-lhe eu, não digo? E ele a explicar-me sem fim que não tem, profissionalmente, competidores — competição, explica ele, competição, percebes? — à altura.
Aí está a cerveja. Já pago? Está bem.gostaria de te contar a tal história, mas agora não posso. Talvez mais daqui a bocado, quando vieres para receber.
“Está ocupada?”, pergunta um tipo qualquer acerca de uma das cadeiras livres que estão à volta da minha mesa. Digo que não com um aceno da cabeça e ele leva a cadeira para outra mesa. Depois vem outro, que tresanda a um perfume qualquer de ressonâncias orientais, e fazemos a mesma conversa. O meu bom amigo vai-se então embora, para casa de não sei quem, e tu vens receber a minha nota amarrotada, e não és bonita. Nem feia.
Entra agora um tipo de trinta e tal ou quarenta anos que cheira a pó-de-talco, e eu começo dedididamente a ver esta esplanada como um expositor de frascos abertos de uma qualquer perfumaria gerida por doidos. Até eu cheiro a não sei o quê — aftershave e suor?...
Agora passa um que diz “até logo”. Pois. Até logo. Agora vem outro e fala, fala, fala, e eu cheio de paciência a escutá-lo, porque sou boa pessoa e só quero que tudo isto se lixe.
Agora vem o meu troco. Desculpa, rapariga, mas hoje acho que, histórias, não as vai haver mesmo. Saí de casa cheio de vontade de escrever coisas dessas, aventuras, fantasias, singularidades, mas a minha vida, afinal, não passa desta porcaria morta, e não há imaginação que resista.
Agora vem um tipo pedir-me a última cadeira livre, que eu lhe cedo de boa vontade, e o facto de se ter esgotado o stock deixa-me mais aliviado.
Oh, as pessoas falam, bebem, falam... Têm as mesmas peles ainda queimadas do sol de verão, o qual, nestes últimos dias, no entanto, tem andado a esconder-se, ou não fosse já outono. A meia-luz é que salva tudo, e a noite de hoje até que nem está desagradável. Que olhares magníficos as mulheres conseguem ter...)
Cumprimentam-me de longe dois músicos que eu conheço. Mas somos todos uns cães, ou então sou eu que acho que não vale a pena mais conversas, pronto, está dito, acabou-se a cerveja e eis-me a acender o terceiro cigarro desta estúpida meia-hora.
E escrever é inútil, embora eu prossiga nessa senda; não sei que mais possa fazer que me compense a vida farta. A minha garota? Chega ao trabalho à meia-noite. Tlão, tocam sinos, tlão, tlão. O melhor será não a deixar sozinha.
Muitos românticos casais a passear por baixo dos candeeiros com design antigo. Muitas donzelas, muitos cavaleiros.
Um tipo com mau aspecto pede-me dinheiro, e eu digo-lhe que não tenho.
Ora, boa-noite. Acho que vou mudar de cenário.”

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