Distraímo-nos, perdemos Carlos de vista. Mas há mais gente do nosso conhecimento à solta pela cidade. O Luís Miguel, por exemplo. Já o conhecem. Também não pára, esse, sempre em circulação, e circular é viver. Mas farto e cansado, muito pensativo no território da literatura mais nobre. Luís Miguel e as suas ideias esquisitas. No entanto, vai arranjar emprego do Estado. Só que ainda não o sabe, e por isso anda preocupado: o futuro, a idade adulta, o êxito (palavra de ordem da nova geração, e do governo).
Está sentado a uma das mesas do café onde Carlos já não está (daí que o tenhamos perdido de vista), a olhar para as pessoas que estão e entram e saem, animadas por uma irrequietude incompreensível. Porque não paramos um bocado e nos sentamos, a olharmos descaradamente uns para os outros? O mundo está cheio de novidades. Faça um romance com isso.
Luís Miguel pensa: “tenho de atinar; de qualquer modo, já estou maluquinho”.
Luís Miguel pensa: “sou irreal; sou aquilo que restou de uma experiência sexual; nem sequer científica”.
Pensa: “o que talvez me caísse bem era só existir: comidas e bebidas, sono, sexo, conversas, histórias para não contar”.
Pensa em como foi possível os homens terem inventado tantas histórias em que não acreditam.
Entretanto, o tempo que sopra — tempo que é vento — responde-lhe assim:
“Abranda. Pára à beira da estrada. Respiras. Estás vivo. Sai do carro. Respira este ar bom. Respira o que vês: a linha difusa dos montes no horizonte, o vale ainda imerso em neblina, o verde baço das árvores sob o brilho secreto do primeiro sol do dia, a gotejarem as águas frescas colhidas durante a noite”.
Ou então responde, ele:
“Ou então estou na cidade. Amigos falam comigo. Digo sim, ou não, ou nada. Tenho as mãos nos bolsos das calças, e sinto-me desprendido, despreocupado. A vida não me aborrece, nem me leva a medos. E estou a sorrir mais. Isso tem valor. Se falar mesmo, talvez alguém me escute”.
É duvidoso que Luís Miguel se aperceba desta troca de palavras entre nada e coisa nenhuma. Todavia, elas estão nele, e ele sabe-as. São as palavras eternas: a vida é bela e louca, não tem outro sentido para além daquele que lhe quisermos dar, deus não existe, a única moral é a que nos faz sentir bem, o pensamento é acção, a maior tragédia humana é a contradição sem fim entre o intelecto (todo poderoso) e o corpo (todo falível), a morte é a pior das coisas (enquanto a vida fizer sentido), amanhã há mais. É isso.
Luís Miguel terceira cerveja, quando entra um conhecido (não se lembra do nome), que se vem sentar à sua mesa e estende a mão e cumprimenta e diz
— Então?
(Então?)
e olha em redor para ver o que há para ver e pergunta
— Que horas são?
E a sorrir diz ainda:
— Estou à espera da minha namorada.
— Fazes bem.
— Hã?
— Fazes bem.
— Ah.
Estão nisto mais um bocado, até que chega a namorada do outro, que é loira e também se senta à mesa e diz “ôi” e tira o casaco e por baixo traz uma blusa de alças, sem soutien, e tem as mamas grandes, e as mamas vão-lhe uma para cada lado, dá vontade de as agarrar com suavidade e depois apertar com força. É curioso: a andar também põe os pés para fora. Uma garota aberta, enfim. Uma fêmea angular.
Está sentado a uma das mesas do café onde Carlos já não está (daí que o tenhamos perdido de vista), a olhar para as pessoas que estão e entram e saem, animadas por uma irrequietude incompreensível. Porque não paramos um bocado e nos sentamos, a olharmos descaradamente uns para os outros? O mundo está cheio de novidades. Faça um romance com isso.
Luís Miguel pensa: “tenho de atinar; de qualquer modo, já estou maluquinho”.
Luís Miguel pensa: “sou irreal; sou aquilo que restou de uma experiência sexual; nem sequer científica”.
Pensa: “o que talvez me caísse bem era só existir: comidas e bebidas, sono, sexo, conversas, histórias para não contar”.
Pensa em como foi possível os homens terem inventado tantas histórias em que não acreditam.
Entretanto, o tempo que sopra — tempo que é vento — responde-lhe assim:
“Abranda. Pára à beira da estrada. Respiras. Estás vivo. Sai do carro. Respira este ar bom. Respira o que vês: a linha difusa dos montes no horizonte, o vale ainda imerso em neblina, o verde baço das árvores sob o brilho secreto do primeiro sol do dia, a gotejarem as águas frescas colhidas durante a noite”.
Ou então responde, ele:
“Ou então estou na cidade. Amigos falam comigo. Digo sim, ou não, ou nada. Tenho as mãos nos bolsos das calças, e sinto-me desprendido, despreocupado. A vida não me aborrece, nem me leva a medos. E estou a sorrir mais. Isso tem valor. Se falar mesmo, talvez alguém me escute”.
É duvidoso que Luís Miguel se aperceba desta troca de palavras entre nada e coisa nenhuma. Todavia, elas estão nele, e ele sabe-as. São as palavras eternas: a vida é bela e louca, não tem outro sentido para além daquele que lhe quisermos dar, deus não existe, a única moral é a que nos faz sentir bem, o pensamento é acção, a maior tragédia humana é a contradição sem fim entre o intelecto (todo poderoso) e o corpo (todo falível), a morte é a pior das coisas (enquanto a vida fizer sentido), amanhã há mais. É isso.
Luís Miguel terceira cerveja, quando entra um conhecido (não se lembra do nome), que se vem sentar à sua mesa e estende a mão e cumprimenta e diz
— Então?
(Então?)
e olha em redor para ver o que há para ver e pergunta
— Que horas são?
E a sorrir diz ainda:
— Estou à espera da minha namorada.
— Fazes bem.
— Hã?
— Fazes bem.
— Ah.
Estão nisto mais um bocado, até que chega a namorada do outro, que é loira e também se senta à mesa e diz “ôi” e tira o casaco e por baixo traz uma blusa de alças, sem soutien, e tem as mamas grandes, e as mamas vão-lhe uma para cada lado, dá vontade de as agarrar com suavidade e depois apertar com força. É curioso: a andar também põe os pés para fora. Uma garota aberta, enfim. Uma fêmea angular.

Agora junta-se-lhes uma amiga dela, que tem, que tem umas mamas ainda maiores, e que tem de fazer (“ainda hoje”) um trabalho escolar acerca do Japão económico, o Japão económico?, tema interessante, dezoito milhões de gente em Tóquio e os karatekas de Okinawa, fixe, tudo gente poupadinha e trabalhadora. E Luís Miguel diz para o ar, com os olhos nas mamas da recém-chegada:
— Isso é fácil. Olha, diz apenas que os japoneses vão invadir o mundo com transístores e fibras ópticas. Diz que são eles os precursores da economia electrónica. (Olha, vai-te foder.) (Fode-me com força, menina).
Miss Mamas Grandes brinda-o com um sorriso de incompreensão, e então de repente levantam-se todos, para irem a qualquer lado, está na hora, e Luís Miguel diz: “fico mais um bocado”.
Deixa que os outros desapareçam pela saída de cima e então levanta-se e sai por baixo.
Vê os cartazes dos próximos filmes que vão estar em exibição nos quatro cinemas da cidade, enfia as mãos nos bolsos, desce a rua e encontra uma amiga cinquenta metros depois. Entram juntos numa pizzaria, sentam-se a uma mesa, ela pede um croissant com manteiga e fala, fala, fala, e ele pede um café e olha para ela, mas não a ouve, pensa apenas, coisas leves, como por exemplo: “tens a pele suave, as mamas redonda e pequeninas...”
Como há-de ele escrever o seu livro de ouro se a vida só lhe dá isto? Apenas um livro, pede ele. Mas o altar está vazio, não há deus hoje, e amanhã se verá, claro, mas é duvidoso.
De novo sozinho, vai andando. Vê-se reflectido no vidro de uma montra, e não lhe agrada o que vê. Mas é-se o que se é. E escrever é sempre contra. Remar contra a maré. Conspurcar as normas conspurcadas, ser genuíno e odiar e amar. Veja-se o destino dos grandes homens: não há glória que os salve, acabam sempre por definhar; é condição íntima da vida, ela própria, que se lhes sobreponha um mal maior. Seja ele qual for, com ou sem nome. Só enlouquecendo um homem se preserva, em pureza e inocência — mesmo que isso signifique crime, sofrimento, solidão, destruição. E Luís Miguel, redescobrindo-se no espelho impreciso de cada montra por que passa, sabe que nunca será capaz de tanto. É portuga, palerma, de brandos costumes. Sonhar é fácil. E ser funcionário...
Ser funcionário de uma imbecilidade qualquer acabará por ser, portanto, o seu destino mais provável. Para quê contrariá-lo? Entretanto, é preciso autenticidade, não te esqueças. Resume-te em pensamentos. Escuta mais e fala menos. Faz do ramerrão quotidiano um acto de criação permanente. Cultiva o ego. Destrói-o. Diz merda.
Oh, sim, é possível pôr todo o mundo em causa em dez ou vinte minutos, enquanto se faz tempo para o jantar. Todavia, o tempo passa depressa de mais, se se está desatento. Vê como as crianças estão crescidas... E já cheira a Natal. (Será das montras sempre apelativas, por ceto). Não, não está confuso: pense ele o que pensar, assim, vai sempre dar tudo em muito pouco.
Oito horas. Um sinuoso odor a refogado. As pessoas vêm dos seus trabalhos numa pressa de formigueiro inundado, fartas umas das outras. É preciso agora entrar em casa, ligar o aquecedor ou a ventoinha e a televisão, auscultar o mundo em pantufas e jornal, fazer de conta que se sabe o que se sabe.
Vida maravilhosa.