FALA O FERNANDO (futuro actor de teatro)

Li num jornal que precisavam de figurantes para um filme, e fui fazer os testes, que estavam marcados para as dez horas do dia seguinte.
Assim, acordei às oito e meia, liguei o rádio e tomei duche. Fui à janela enquanto me estava a vestir. Havia sol, e isso pareceu-me um bom sinal: o sol é sempre um bom sinal, quando não se tem chapéu-de-chuva e o tempo está instável.
Comi distraidamente o pequeno-almoço na manjedoura do costume, e comprei um jornal. Fui a lê-lo enquanto o barco atravessava o rio, e depois mandei-o fora, como faço com todos os jornais.
O local de rendez-vous era próximo, e prossegui a pé. Só para chatear, que isto é mesmo assim, começou a chuviscar. Eram nove e meia. Cedo ainda, portanto. Tomei mais um café, ali perto, e gastei o tempo que me sobrava a ler outro jornal, que entretanto comprei, e que também deitei fora, depois de lido.
Quando cheguei ao Nº 63, que era o número da porta da casa onde iam fazer os testes, já lá estavam mais dois tipos. Um de nós tocou à campainha, e veio uma rapariga atender-nos. Disse-nos que entrássemos. Deixou a porta aberta. Subimos por umas escadas atrás dela, até ao primeiro andar. Fomos informados de que podíamos esperar ali. Depois entrou para um gabinete só com uma cadeira e uma secretária, e pôs-se a fazer que fazia, e a olhar-nos de soslaio, pelo meio.
Havia cadeiras, e sentei-me numa. Algumas caixas de bobinas de filmes faziam a vez de cinzeiros. As paredes interiores, falsas, eram em madeira prensada, e não chegavam ao tecto. Havia ainda alguma literatura avulsa sobre cinema numa espécie de mesa, e cartazes de filmes colados um pouco por toda a parte.
Entretanto, foi chegando mais gente: rapariguinhas mulheres-fatais, e tipos com o cabelo rapado, e tipos com ar de canalizadores, e fulanas com ar de estudantes de Belas-Artes ou de moda.
Às dez e meia, a rapariga-recepcionista disse “vão-se chegando e digam coisas”, um a um, quer dizer, todos os que ali estavam tinham marcado entrevista pelo telefone, e ela, que já tinha uma caixa de fichas individuais, queria agora enfiar lá informações do tipo: altura, cor dos olhos e do cabelo, línguas que cada um falava, experiência na arte de representar, etc.
Só quando este episódio chegou ao fim é que começaram os testes propriamente ditos. Foi assim: entrávamos aos pares para uma divisão onde estava um projector enorme, aceso, uma câmara de filmar e dois tipos com ar de toca-a-despachar. Disseram-nos para ler um pedacinho de um livro estúpido, a olhar de frente para a câmara, alto e bom som, e depois para continuarmos a ler de perfil para a câmara, um para o outro, e o tipo que estava comigo tinha ar de idiota e começou a rir, muito impressionado com aquilo tudo e com o projector, que tinha uma luz quente, e eu disse-lhe: “não te rias para mim”, e pronto, acabámos. Lá me disseram então os funcionários que esperasse quinze dias. Se até lá fosse contactado, teria de ir fazer outros testes. Ok.
Saí e já estava a fazer sol outra vez. Passeei um bocado pela cidade e depois fui para casa e esperei quinze dias e nada. Também não me importei. Afinal, era apenas uma questão de ganhar mais uns trocos. No fundo, eu sou é actor de teatro. Agora, aliás, ando a preparar uma peça de um tipo americano, só para um personagem, e as coisas estão a correr bem. Creio até que vou conseguir um subsídio. É o que é preciso. Conhecer, aprender e andar sempre. Sim, que até mesmo um actor de teatro tem de comer, não é?

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