Hoje Carlos acordou topa-a-tudo, uma vez mais: oito da manhã e abriram-se-lhe os olhos, de repente. Tomou duche a cantar. Fez ele mesmo o seu pequeno-almoço, e tomou-o, sozinho, no quarto, com a janela aberta e o rádio ligado baixo, longínquo.
Está sol, brilho no verde ainda das árvores. O locutor faz piadas nas palavras: “mais parece a prima Vera”.
Uma fera, rima Carlos na cabeça. E agora um cigarro. E é preciso encontrar outro cancro. Até mesmo outra música. Desliga o rádio e põe um disco. Assim está melhor.
Falemos pois de Paris, enquanto não chega a ressaca. Paris está cheia de bombas árabes, os pintores mudaram-se para Sintra. Paris porquê?
Carlos gostaria muito mais de estar na sua selva, longe das cidades: a selva dos animais selvagens, dos rios com jacarés, dos Tarzans, das pragas de gafanhotos, dos batuques frenéticos.
“Carlos...”
A selva da fome, das guerrilhas pela independência, do calor escaldante, das chuvas torrenciais, dos mosquitos e das febres, do racismo.
“Carlos, põe a música mais baixa, não acordes o teu pai”.
Está a fumar o segundo. Está a borrifar-se.
“Carlos, estás a ouvir?”
“ ‘Tou”.
“Põe a música mais baixa”.
Desliga o aparelho, atira com os objectos de passear — chaves, isqueiro, cigarros, dois ou três cartões — para dentro dos bolsos do blusão e sai, a dizer: “até logo, não venho almoçar”.
Sim, toca a desaparecer. Boa disposição é boa disposição, e ele hoje sente-se disposto a conseguir alguma coisa, porque o verão já acabou, e é preciso pôr o suor no rosto, cheiro na vida. Tem de se safar, porra, senão daqui a pouco chega aos trinta sem dar por isso, e acaba lixado, à procura da sorte, cara aelgre, a vida é...
Bom, sabe bem no que está metido, em que vidas. E sabe quem é, não devia preocupar-se. (Ou devia preocupar-se mais ainda, precisamente porque se conhece bem).
E sai, a falar sozinho. Está um sol qualquer, sim, a bater, a clarear árvores e janelas. Os pássaros fazem a sua feira, conversam os seus planos por entre os ramos. As pessoas correm para trabalhar. Já todos nós, pessoas das cidades, vimos e ouvimos tudo isto: as pessoas a correr, os pássaros a conversar, os carros, o café, o sabonete, os despertadores em paranóica berraria. (A propósito: como é que as pessoas acreditariam a horas antes de haver tais relógios histéricos?) (Se há alguma culpa aqui, ela só pode advir do nosso cansaço crescente, pois ele é que nos exige o tempo tão compartimentado, tão evidente).
Carlos é-nos já alheio. Alheia-se: vê, mas não liga. “É segunda-feira, são nove horas da manhã, é uma nova semana, uma semana de trabalho, o homem nasce para viver” — eis o que ele pensará, talvez, talvez com uma certa vontade de riso. E senta-se no café neurótico, e quer café. E quer cerveja.
Passa-lhe pela frente o Tó, em passo de galinha tonta. Faz-lhe sinal o Carlos. Mas demora algum tempo até ficar visível, porque o outro também anda sempre a não ver.
— Já aqui, tão cedo? — pergunta o Tó, enfim presente.
— Ando a oferecer os meus serviços. Cartaz: empresário de meninas fotogénicas que pretendam atingir o estrelato depressa. Dá-se ajuda. — E dá uma gargalhada ruidosa.
— Essa secção é minha — contrapõe o tó, sereno, em maré de contrabalanço.
— Pois. Mas como vivemos num mundo livre...
— Tretas. O que é que pagas?
— Um copo de água.
— Não pagas uma cerveja?
— Não posso, estou pobrezinho.
— Queres beber uma cerveja, então? Eu pago.

Carlos não dá resposta: faz apenas um certo olhar, irónico q.b., e depois sorri. E depois chama o empregado e pede: “duas cervejas”. É assim a vida. E calma: são nove e trinta e está tudo a correr bem.
Um pequeno grupo de miúdos sujos, rotos e pés descalços irrompe de repente pela porta de baixo do café, a pedir dinheiro, de mesa em mesa, dinheiro... dinheiro... dinheiro... dinheiro... dinheiro... dinheiro... dinheiro... dinheiro... dinheiro... dinheiro... dinheiro... dinheiro... dinheiro...
Com este refrão vão andando, até que chegam, agora, à mesa onde estão o Carlos e o Tó. O Tó que ri, está triste. O Carlos oferece uma moeda aos miúdos, a única que tem, mas eles não a aceitam. É pouco. Dinheiro, dinheiro, dinheiro, a necessidade alucina, é voraz, é maior — como um vício, parido do útero estéril dessa própria necessidade. Uma paródia.
Os miúdos vão-se, semi-escorraçados pelos empregados do café, pais de outros filhos; vão-se em semifuga, cheios de paciência (hão-de voltar), e Carlos diz:
— Tão maus e tão sujos como os velhos, só mesmo as crianças. — Sorri. — É possível odiar as crianças.
O Tó ri, com um olhar de incompreensão. E assim vai o tempo passando. Os relógios, os factos e a Europa encarregam-se disso. E Carlos insiste na sua:
— As crianças são impertinentes, inoportunas, grosseiras, ruidosas, imorais. Moram na face clara das moedas, e os velhos na face escura. Não se encontram, e são inseparáveis. Prefiro os cartões de crédito.
Interiormente, o discurso de Carlos é outro: tem alguns receios ao fundo das palavras, um muito recheado cardápio de dúvidas e interrogações, até mesmo fantasias, e logo de seguida planos:
Observa os rostos jovens como o seu, e procura neles os inequívocos sinais das vitórias e das derrotas. Há olhares que dizem: estou cansado, estou farta, estou à espera, estou — Há expressões que dizem: sou o que sou e nunca serei outra coisa; sou de plasticina, sou de barro, moldo-me às circunstâncias, espero e procuro a minha oportunidade; procuro — Há gestos que afirmam: estou pronto para nada; estou como estou. E Carlos pergunta-se:
Que sei eu fazer? Que tenho eu para dar? Será possível que também eu vá falhar a vida? Qual a minha utilidade, agora e aqui, e sempre? Que posso eu fazer para viver como sou? E sonha:
Que vai mar fora, num veleiro grande, num dia de sol, com ilhas a bombordo, ao longe, e o seu olhar adiante, no rumo, a ver a proa a sulcar as águas claras.
Que é um músico muito conhecido, e que vai dar início ao seu concerto do ano, o melhor.
Que desenha roupa que está na moda, e que as pessoas andam na rua com essa roupa inventada por ele, e que, por isso, as pessoas parecem mais reais.
Que acerta na lotaria e que vai para a esplanada de um café num país tropical.
E assim faz planos, sim:
O tempo vai passando, mas não é preciso pressas. Primeiro, aprender. E quanto falta ainda... Vinte e poucos anos já não chegam para fazer um homem. Somos agora uma espécie lenta. E um plano, um bom plano, deve sempre obedecer a uma ideia de génio. É preciso ser genial. Fazer planos é fácil. Nada fazer é fácil.
— Então, desligaste?
— Hã?
— Nada.
— Estava a pensar.
— Notou-se.
— Vamos embora daqui.
As pessoas separam-se umas das outras para reentrarem nos seus currais, para encherem a barriguinha. Depois regressam ao cenário habitual, com outras roupas, outras ideias, novo filme. Restabelece-se o diálogo improvável. Talvez, algures, se faça alguma luz. Mas os rapazinhos e as rapariguinhas, muito tenros, muito tudo, não sabem ainda o que os espera.
Noutro café agora, Carlos e Tó bebem martini. É preciso não ceder. Passam mulheres bonitas.
— Onde é que vais almoçar? — pergunta o Tó.
— Não sei. Acho que não vou almoçar.
— Eu, estou cheio de fome.
Passam mulheres feias.
— Tens o mal dos pobrezinhos. E eu não, que o sou. Deve ser doença.
— Tenho é muito que fazer.
— És o tipo mais atarefado que eu conheço. Isso resulta mesmo ou só serve para te aborreceres mais um bocado?
— Vai-te lixar.
Passam cães.
Aprendem-se inúmeras coisas, nesta cidade. As escolas extravasam dos seus limites, todos são professores de todos. Mas aquela pergunta mantém-se: isso resulta mesmo? Quer dizer: as matérias em estudo terão realmente a importância que lhes pretendem dar, ou servem apenas para nos ajudar a continuar vivos, por distracção?
Carlos despede-se de Tó. O seu espírito, esticado até à transparência, vai agora sobre a cidade, enquanto ele trepa a rua que ainda há pouco desceu, como um alpinista da sonolência. Anda à procura dos seus ideais, perdidos na sublime surpresa dos acasos: talvez as mulheres bonitas não sejam necessariamente estúpidas, talvez um semidesconhecido se lembre dele para lhe falar de Fortuna, com um mapa na mão. Um homem não perde a esperança: um homem assobia, caminha, pede boleia nas auto-estradas, põe objectos de oiro pessoal no prego e trepa, trepa sempre. A algum lado ele há-de chegar. Se quiser. Um homem.

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