Quatro da tarde, outra vez no mesmo café barulhento e heterogéneo. Não há fuga possível a isto.
Carlos está uma vez mais, como quase todos os dias, a ler um jornal, sempre à procura das piadas escondidas nas notícias sérias. Às vezes, quase se desmancha numa gargalhada súbita: os discursos dos ministros e as entrevistas com os intelectuais, em particular, conseguem-lhe isso com muita frequência.
Chegam artistas-estrelas ao aeroporto, é preciso correr para lá. (Uma cantora de rock’n’roll (não) diz aos jornalistas: “eu sou o vosso subsídio de alimentação.”)
Há tagarelices incompreensíveis, figuras públicas que se exprimem no tom cinza dos gabinetes burocráticos, páginas inteiras dedicadas a opiniões inúteis.
A secção de emprego, como sempre, sugere-propõe-impõe toda a sorte de porcarias: enciclopédias de luxo para vender aos amigos, por exemplo. Óptimas comissões. Não parece uma maravilha? É a vantagem de se ser europeu, de ter mísseis americanos, de sofrer da paranóia do perigo amarelo, ou verde, ou rosa.
E a moda para esta estação...
Os jornais que Carlos compra acabam, invariável e rapidamente, no caixote do lixo do esquecimento, depois do tal riso, nem doce nem amargo.
O mundo de Carlos, que é este, teu também, tem demasiadas fronteiras. Para quê ficar, quando há praias tranquilas — não de tédio, mas de prazer? E como partir? Eis a questão.
Lembra-se ele de ter acordado cheio de forças. Todavia, a força não basta. É preciso astúcia. É preciso alguma coisa de mais concreto, um esforço dirigido para um fim preciso. Por isso é que perdeu as forças com as quais começou o dia: por falta de objectivo. No fundo, já sabia que ia acabar o dia, mais um, sem rumo, pelas ruas e os cafés, à procura de conversa, de confusão, de um qualquer arco-íris dos sentidos. E depois, à noite, na cama, a pensar: “bom, vamos lá então ver o que é que aprendi hoje”. E não consegue: a sabedoria é cega.
Falou de artes, do traseiro sugestivo das mulheres, falou do tempo e do sabor da cerveja e de pessoas que não vê já há muito. Disse: “há por aí um filme novo que quero ver”. Disse: “acho que a melhor maneira de vencer na vida é pelo atrevimento”.
À noite, na cama, há-de pensar, pois: “ bom, o que é que consegui aprender hoje de importante?”
Está no café, são agora cinco horas da tarde, e já sabe tudo. Par quê ficar?
No entanto, fica: nunca se sabe tudo. À noite, na cama, talvez venha a pensar: “ah, sim, eis-me no caminho que pretendo”. Fabuloso e terrível acaso, não é? Pensar. Ver. Viver.
Viver devia ser como enviar telegramas. Devia ser como tocar campainhas. Como sonhar, enfim. A vida devia ser o sol numa praia com palmeiras e sem tubarões.
Não é. É aturar os outros, chamar os outros ao nosso convívio para lhe despejarmos a neura em cima, sermos nós próprios receptáculos das neuras que dos outros crescem.
Carlos está uma vez mais, como quase todos os dias, a ler um jornal, sempre à procura das piadas escondidas nas notícias sérias. Às vezes, quase se desmancha numa gargalhada súbita: os discursos dos ministros e as entrevistas com os intelectuais, em particular, conseguem-lhe isso com muita frequência.
Chegam artistas-estrelas ao aeroporto, é preciso correr para lá. (Uma cantora de rock’n’roll (não) diz aos jornalistas: “eu sou o vosso subsídio de alimentação.”)
Há tagarelices incompreensíveis, figuras públicas que se exprimem no tom cinza dos gabinetes burocráticos, páginas inteiras dedicadas a opiniões inúteis.
A secção de emprego, como sempre, sugere-propõe-impõe toda a sorte de porcarias: enciclopédias de luxo para vender aos amigos, por exemplo. Óptimas comissões. Não parece uma maravilha? É a vantagem de se ser europeu, de ter mísseis americanos, de sofrer da paranóia do perigo amarelo, ou verde, ou rosa.
E a moda para esta estação...
Os jornais que Carlos compra acabam, invariável e rapidamente, no caixote do lixo do esquecimento, depois do tal riso, nem doce nem amargo.
O mundo de Carlos, que é este, teu também, tem demasiadas fronteiras. Para quê ficar, quando há praias tranquilas — não de tédio, mas de prazer? E como partir? Eis a questão.
Lembra-se ele de ter acordado cheio de forças. Todavia, a força não basta. É preciso astúcia. É preciso alguma coisa de mais concreto, um esforço dirigido para um fim preciso. Por isso é que perdeu as forças com as quais começou o dia: por falta de objectivo. No fundo, já sabia que ia acabar o dia, mais um, sem rumo, pelas ruas e os cafés, à procura de conversa, de confusão, de um qualquer arco-íris dos sentidos. E depois, à noite, na cama, a pensar: “bom, vamos lá então ver o que é que aprendi hoje”. E não consegue: a sabedoria é cega.
Falou de artes, do traseiro sugestivo das mulheres, falou do tempo e do sabor da cerveja e de pessoas que não vê já há muito. Disse: “há por aí um filme novo que quero ver”. Disse: “acho que a melhor maneira de vencer na vida é pelo atrevimento”.
À noite, na cama, há-de pensar, pois: “ bom, o que é que consegui aprender hoje de importante?”
Está no café, são agora cinco horas da tarde, e já sabe tudo. Par quê ficar?
No entanto, fica: nunca se sabe tudo. À noite, na cama, talvez venha a pensar: “ah, sim, eis-me no caminho que pretendo”. Fabuloso e terrível acaso, não é? Pensar. Ver. Viver.
Viver devia ser como enviar telegramas. Devia ser como tocar campainhas. Como sonhar, enfim. A vida devia ser o sol numa praia com palmeiras e sem tubarões.
Não é. É aturar os outros, chamar os outros ao nosso convívio para lhe despejarmos a neura em cima, sermos nós próprios receptáculos das neuras que dos outros crescem.
Quem o diz é a Aurora.
— Ando a ver-te muito — responde Carlos.
— Onde?
— Por aí.
— É natural, eu costumo andar por aí. E agora só tenho um bocadinho, vou ter uma aula de inglês daqui a dez minutos.
— Andas cheia de actividade.
— Ando é cheia de actividades. Até aos cabelos.
— O que as pessoas dizem, só a falar.
— Realmente.
E como as pessoas nunca são sozinhas, chega uma amiga de Aurora que Carlos não reconhece, mas que lhe é apresentada. Chama-se Renata, e tem uma boca bem feita — boa de beijar, com certeza. E os olhos: também tem olhos, “tão cheios de luz como o céu numa tarde de verão” — pensamento este de quem aceita exageros, e às vezes se perde em sentimentalismos, Carlos em dia sem sal.
Porque Aurora já ali vai, para a sua aula de inglês, Carlos decide-se a cultivar o novo conhecimento.
— Então conta-me lá coisas de ti, qu’é p’ra eu saber quem és — diz ele, a sorrir sem sentido.
— O que é que queres que eu te diga?
— Não sei. Tu é que sabes o que queres dizer.
— Gostas de brincar com as palavras, não é?
— Gosto de brincar, seja lá com o que for.
— Eu já te conhecia.
— A sério? Não são precisos dois para o tango?
— O que eu quero dizer é que já me tinham falado de ti.
— Quem? As pessoas têm bocas grandes.
— Não me lembro.
— E então?
— Então o quê?
— Que te disseram as bocas grandes de mim?
— Nada de especial.
— O mundo está cheio de mentira — Sorri. — Pois eu, nunca te tinha visto antes. Devo andar muito distraído.
— Porquê?
— Acho que tens uma figura em que vale a pena reparar.
Renata sorri, até uma breve gargalhada.
Passa tempo, é verdade, pois é.
Agora vemo-los silenciosos e quietos. Enquanto estiveram a falar, mexeram os dedos, as mãos, agitaram-se nas respectivas cadeiras, dispersaram olhares.
Quando Carlos está a conhecer alguém, as coisas acontecem sempre assim: as pessoas ficam com o curioso aspecto de quem está à espera que lhe digam alguma coisa de especial — uma certa excitação no ar, se é que me entendem —, porque as pessoas gostam da invulgaridade que não as assusta, e Carlos é exímio na arte de sugerir tais mistérios suaves.
Todavia, está lixado. Pensa: “um dia destes conheço toda a gente do mundo”. Porque anda a tentar distrair-se de toda a sua vida lixada. É um homem à procura de ocupação, para se aturdir, e de um sentido para os seus dias, viciosamente sem sentido, e nos quais, agora, até já uma mentira vale. Um sentido para escapar ao próprio aturdimento.
— Vou-me embora — diz Renata. — Tenho uma aula agora.
— Uma aula de quê? — “Tu também, minha filha?”
— De matemática. Queres vir assistir?
— De matemática?
Seis horas.
— Ando a ver-te muito — responde Carlos.
— Onde?
— Por aí.
— É natural, eu costumo andar por aí. E agora só tenho um bocadinho, vou ter uma aula de inglês daqui a dez minutos.
— Andas cheia de actividade.
— Ando é cheia de actividades. Até aos cabelos.
— O que as pessoas dizem, só a falar.
— Realmente.
E como as pessoas nunca são sozinhas, chega uma amiga de Aurora que Carlos não reconhece, mas que lhe é apresentada. Chama-se Renata, e tem uma boca bem feita — boa de beijar, com certeza. E os olhos: também tem olhos, “tão cheios de luz como o céu numa tarde de verão” — pensamento este de quem aceita exageros, e às vezes se perde em sentimentalismos, Carlos em dia sem sal.
Porque Aurora já ali vai, para a sua aula de inglês, Carlos decide-se a cultivar o novo conhecimento.
— Então conta-me lá coisas de ti, qu’é p’ra eu saber quem és — diz ele, a sorrir sem sentido.
— O que é que queres que eu te diga?
— Não sei. Tu é que sabes o que queres dizer.
— Gostas de brincar com as palavras, não é?
— Gosto de brincar, seja lá com o que for.
— Eu já te conhecia.
— A sério? Não são precisos dois para o tango?
— O que eu quero dizer é que já me tinham falado de ti.
— Quem? As pessoas têm bocas grandes.
— Não me lembro.
— E então?
— Então o quê?
— Que te disseram as bocas grandes de mim?
— Nada de especial.
— O mundo está cheio de mentira — Sorri. — Pois eu, nunca te tinha visto antes. Devo andar muito distraído.
— Porquê?
— Acho que tens uma figura em que vale a pena reparar.
Renata sorri, até uma breve gargalhada.
Passa tempo, é verdade, pois é.
Agora vemo-los silenciosos e quietos. Enquanto estiveram a falar, mexeram os dedos, as mãos, agitaram-se nas respectivas cadeiras, dispersaram olhares.
Quando Carlos está a conhecer alguém, as coisas acontecem sempre assim: as pessoas ficam com o curioso aspecto de quem está à espera que lhe digam alguma coisa de especial — uma certa excitação no ar, se é que me entendem —, porque as pessoas gostam da invulgaridade que não as assusta, e Carlos é exímio na arte de sugerir tais mistérios suaves.
Todavia, está lixado. Pensa: “um dia destes conheço toda a gente do mundo”. Porque anda a tentar distrair-se de toda a sua vida lixada. É um homem à procura de ocupação, para se aturdir, e de um sentido para os seus dias, viciosamente sem sentido, e nos quais, agora, até já uma mentira vale. Um sentido para escapar ao próprio aturdimento.
— Vou-me embora — diz Renata. — Tenho uma aula agora.
— Uma aula de quê? — “Tu também, minha filha?”
— De matemática. Queres vir assistir?
— De matemática?
Seis horas.
