A RÃ, por Luís Miguel

Eu não sou. Sou três da tarde a meio de um verão, deitado na minha cama, nu com a janela aberta. Tenho um disco pop a rodar baixo no gira-discos. Penso em não pensar. Às vezes a música é que consegue. Sinto-me embriagado. Bebi muita água. Penso no sexo com uma mão no sexo, penso: “como é que uma mulher pensa?, como é que sente isto?” As mulheres nuas e deitadas ficam maiores. Os homens também, mas quando estão mortos.
Curiosa, essa questão da identidade. A fundo, o que é ser “eu”? O meu corpo, o meu passado, o meu modo de pensar? Deve ser isso. Ou aquilo. Pois bem, aqui estou, deitado na minha cama, com a janela aberta, janela-a-ver-o-sol, e vou pensando coisas. Estou nu. Tenho aquele disco a tocar baixinho. Às vezes deixo-me ficar assim sem fim, apenas atento à música. Verão, calor. Gosto do verão. É bom deixar-me estar na quietude silenciosa do dia calmo, às três da tarde. Por outro lado, estou à tua espera. Tu és a mulher que eu amo. És uma mulher, eu um homem. Assunto interessante.
Estou à tua espera e tu só virás por volta das cinco. Agora trabalhas, e eu estou de férias, e a vida é bela. Sinto-me embriagado, mas não bebi nada. Penso em não pensar. Penso: “não vou pensar... agora”. Depois recomeço, como é óbvio, e surge-me o diário do quotidiano, ao sabor do acaso: perguntas, frases soltas, pequenas melodias, sensações, poemas, nomes. E é tudo para esquecer. Olho para mim, nu, e então volto a ti, porque estou à tua espera, e penso-te. Penso o teu corpo brando e volumosamente rico, os teus gestos, os momentos que te são únicos, as entradas todas que tu (que as mulheres) permites. Penso, de outro modo, o mesmo: “como é que tu pensas?, como é que tu me sentes dentro de ti?” (Como é que uma mulher sente um homem dentro dela?) Crei oque nunca tinha pensado nisto assim. Devo estar demasiado habituado a vir de fora. Sou homem, tu és mulher.
Ainda tenho hora e meia de espera — se vieres realmente às cinco —, não existe mais ninguém e aqui estou, a pensar todas esta coisas. Sabes?, estou a ver-te já, nua, inclinnada sobre mim, e eu a pedir-te que não faças, não, deita-te, quero ver-te, o meu olhar de lobo pelo teu corpo abaixo e acima, devagar, e a sede, saliva minha a crescer, mas ainda não, vejo-te e só te vejo, os teus olhos fechados, os lábios entreabertos, os mamilos erectos, as mãos expectantes, uma perna que se ergue, outra que se estende, o tufo de pêlos púbicos onde os meus dedos agora brincam, como se fossem plumas de pianista, dedilhado de concerto, pauta de silêncios inesperados. Sabes?, nua e deitada, és maior. Não és a mesma mulher: pareces crescer para a tua verdadeira dimensão, e eu admiro-te por isso, e desejo-te cada vez mais, e procuro compreender-te melhor, pela difícil lente desse meu desejo. Não sei quais as melhores palavras para o dizer, mas o que faço é isto: imagino-me tu e eu, em simultâneo.
Acaba o disco, com um pequeno estalido, e eu levanto-me, e ponho outro a tocar, e torno a deitar-me, e fica tudo bem outra vez: eu, nu, a música a tocar, o sol a entrar pela janela aberta e são quatro da tarde.
Imagino-te, pois, sem deixar de ser eu, toco-te mentalmente em todos os milímetros, os meus dedos escorregam na liquidez oleosa dos teus segundos lábios (talvez os primeiros), e penetram-te, em zonas de luz não iluminadas, patinando pela superfície feérica das mucosas, pântano das origens, profundas águas do desejo. Estremeces, na boca de sons sem palavras, e eu não paro de te tocar, como um explorador em chamas na selva virgem.
Estou deitado, nu, de olhos fechados, e toco-me, dedos finos sobre o púbis, um pouco como se fosses tu. É fundamental enganar os dedos, para garantir a ilusão. Então é já fácil, quase, imaginar uns seios, umas nádegas, um sexo como tu.
Sinto-me lascivo, antevendo tudo o que será possível fazermos hoje nesta cama, em nome da sede e da fome, do amor e do desejo. Os corpos falam, são actores mudos neste palco íntimo onde impera a voz dos gestos, das sensações e das respirações. O desejo dói, é excessivo, toma palavra de dono. Às vezes tenho a impressão de que não quero mais nada senão isto — de que não sou capaz de mais nada. Longe de tudo, da arte, do ser neurótico, dos mecanismos quotidianos; e fico absolutamente erótico, e sinto-me um vidente subjugado, a uma visão da santidade: limpidez, universalidade, amoralidade. Então é como se pudesse ser de todos os corpos, envolvido num oceano eléctrico de perfumes — um inconfundível odor a esperma, a suor e a tudo. Uma grande estrada, um grande deserto com dunas suaves de epiderme.
Os seres humanos nus são muito estranhos. Olho-me e já não te vejo. Vejo-me nu e acho-me estranho. A minha cor, as minhas formas, os meus pêlos. Como isso me excita, apesar de tudo, mulher onde quer que tu estejas, a caminho daqui.
Preciso de te morder, de te arranhar e apertar entre os meus braços, mãos, pernas, capturar-te a cintura fina, as nádegas cheias, os seios grandes, a boca a boca a boca, os teus abraços, os teus próprios apertos, o teu peso. Hoje quero o teu peso, completamente, porque te quero muito. Quero que me possuas como eu te possuo, quero julgar-te mulher, mas principalmente corpo, de um modo total, quero uma identidade cúmplice, quero experimentar todos os nossos possíveis.
A espera mede-se em canções. Agora torno a erguer-me e ponho a rodar o terceiro disco da tarde. Estou nu à janela, as pessoas passam e não me vêem. Quase me apetece a noite, de repente; um uivo. A nudez é bela. Sejas tu quem fores, tu que passas dentro da tua roupa, tu que não me vês. Os teus olhos só vêem os teus próprios pensamentos, e por isso não te consegues ver, nem ver-me, nem sabes que o homem invisível a esta janela está à espera de uma mulher que se vai despir para que ambos inventem o amor, ou até mais que isso: o centésimo sentimento, a milésima sensação, sonho fundamental ainda sem nome. Vê a imagem: é tudo isto como se o sol-luz batesse em mim, e eu, mais que espelho, brilhasse inteiramente, explosão.

Às cinco e dez chegas, abro-te a porta e tu abraças-me, beijas-me... Estou com uma erecção tão forte que logo ali me abocanhas o sexo, enquanto te despes, doida de sede e eu sedento, ambos assim nadando para o quarto, imperceptivelmente, até que alcançamos a cama, que estala sob a nossa massa incrível, a nossa incrível leveza. Não pareces ser capaz de me soltar o sítio onde mora o fogo, e eu então mergulho no teu, com a viva e real sensação de que quase poderia enfiar a minha cabeça dentro de ti, fazer das tuas entranhas uma caverna para a luz do dia, aventura de ti comigo dentro de ti própria. O tempo escorre por todas as coisas, e tu pedes-me, com voz de canibal, que te penetre a doer, a arder, de qualquer maneira mas entra em mim, dizes tu, vem, doido, com os teus braços desamparados, a tua força magnífica.
Rodamos depois sobre nós próprios, e agora estás sobre mim, e eu digo-te que é assim que hoje quero ficar, até ao fim. Dizes “como queiras”, ou é como se o dissesses, porque nada dizes. Tenho-te, pois, carnivoramente nas minhas mãos crispadas, e todo eu assim, e o teu peso há tanto esperado faz-me abrir as pernas, que depois te envolvem pela cintura; e aí estou eu, suspenso do tecto, a olhar para nós, e pareço uma rã numa mesa de dissecação; quase não em movo, sinto apenas; balançamo-nos como num jardim infantil, e ouvem-se, de facto, crianças, lá fora, em mil jogos; mas, no fundo, não se ouve mais nada senão as nossas respirações, e o tique-taque do despertador, à cabeceira, cheio de destino; e eu, vendo-me rã, já não sou ninguém, nem eu nem tu, nem homem nem mulher.
Sinto, desta vez, a espuma do prazer a subir de encontro ao teu corpo pronto para se encher, e de onde tudo há-de, enfim, extravasar, e, por breves instantes, dois segundos apenas, toco em alguma coisa — o teu ser de mulher, o teu absoluto —, e então ejaculo-me, mas tal parece estar a acontecer no espaço, no vazio, entre estrelas: o meu ventre sente-se muito livre, e o esperma assemelha-se a uma espécie de mancha de vida, a flutuar livremente à nossa volta.
Quando, finalmente, te soltas do abismo do teu orgasmo, sinto o teu peso aumentar, e reconheço-te, e reconheço-te através de um gesto: a tua cabeça sobre o meu ombro, a tua boca entreaberta e húmida no meu pescoço, como eu te faço. Reconheço-te, e és eu. Que aconteceu? Olhas-me nos olhos, agora, e não sei o que te possa dizer. Penso: “demasiado bom”. Penso: “não sei o que quero”.
“Estou com fome”, dizes tu. E sorris. E eu penso.

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