“Aos domingos, davam grandes passeios”. Plágio não registado.
Onze da manhã e Luís Miguel ainda na cama, em dissertação muda e pachorrenta:
“A literatura dos meus contemporâneos está podre. A minha incluída.
Exercícios de estilo? Quase tudo.
As pessoas não se embebedam de caixão à cova, não fodem alegremente como cães, não são reais. Não há pessoas.
Problemas existenciais com dinheiro? Quase todos.
Ninguém uiva nas ruas. Não há amok. Não há céu nem inferno: apenas um lento e enjoado purgatório, à espera de um juízo final, uma grande guerra de moralistas que conceda amnistia a bons e a maus”.
Poderia, no entanto, ser mais simples. Tudo. Exactamente tudo: os mistérios de nascer, crescer, viver e morrer. Podia ser verão e haver praias desertas. O inverno podia dizer morte, mas a morte não matar.
Luís Miguel, escritor por força dos factos, escritor em vias de extinção, lembram-se dos dias em que arrisca ser alguém parecido com alguém; consigo próprio, essencialmente. E é sempre na rua que lhe acontece, brilho, amor, vida. Mas sente-se incompleto: uma simples opinião adversa, uma breve desilusão, e o castelo de pedras passa a castelo de cartas, o vento sopra, o castelo cai. Tantos exércitos contra um pouco de felicidade. E é por isso que os domingos não prestam, os dias não prestam, as pessoas não prestam. A música saloia atroa os ares, há missas para crianças e velhas, passeios em jardins, matinés com os últimos êxitos em celulóide. Odeia-se isto, então odeia-se o ego confundido, os ascendentes, as amizades e até os desconhecidos.
Aos domingos, Luís Miguel pensa sempre que não conseguirá sair da cama, nunca mais. Hoje, no entanto, ainda não será esse dia, porque tem encontro com a nova namorada, que é filha de boas famílias, como todos as namoradas de domigo são.
“Quem me dera ser decadente, maldito até mais não”.
Mas como não é, terá de cingir-se à insalubre certeza de uma vida vã. Contudo...
...Mas maldita é essa esperança, que o faz esperar sempre. “Talvez aos trinta”. Não? “Talvez aos quarenta”. E talvez envelhecer seja isto. Estupidamente. Futebolisticamente: ao intervalo, mudança de baliza; marcar golos, escorregar na relva molhada; novos jogos sempre, até mesmo para os veteranos. Diz-nos, espelho mágico: quem é o árbitro, nesta realidade? Que treinadores? Que adversários? Que público? Porquê?
Por não ser capaz de sair da cama é que sai, que pelo menos vai-se comendo, e é facto que já cheira a almoço: um odor abençoado, as boas intenções evangélicas ainda presentes no ecrã, toda a gente a mastigar empadão de hóstias.
Acaba de comer já com os desenhos animados de monstros maus e monstros bons (“os bons são bons porque só batem nos maus”) a sucederem-se ao noticiário. Regressa ao quarto. Fuma um cigarro. A cama já não é convidativa, e parece-se agora com o começo de um cemitério privado.
A namorada à espera. Talvez tenham combinado ir ao cinema, ver um filme qualquer, cumprir o dia. Mas a verdade é que não lhe está a apetecer vê-la. Fodê-la sim, beber vinho de boa colheita, dormitar ao sol, passear de carro junto ao mar, ao começo da noite...
Tudo o que deseja, e é um sonho que lhe fica distante. Para levar a namorada para a cama é mais uma semana, pelo menos, que ela julga-se virtuosa. E ele não tem carro, não tem casa, não tem dinheiro nem objectivos muito precisos. Escreve umas coisas. Às vezes entusiasma-se. Às vezes nada daquilo vale. Palavras. Muito importantes, as palavras, etc.
Regressa ao ecrã, ao filme cor-de-rosa ou aventura da tarde. Toda a família. O olhar distrai-se, o pensamento viaja em sofás: é preciso escapar à monstruosa fantochada. Viva o cinema.
Acaba de chegar ao aeroporto num avião americano. A sua mala cheia de cocaína, pasta dentífrica e roupa, a sua mala desapareceu. Volta-se para o agente alfandegário ali mesmo junto a si, e afirma: “sinto-me em casa; este é que é verdadeiramente o meu país”.
Sai. Este o país, esta mentalidade, esta doença, este escorbuto das ideias, estes acasalamentos para proles de imbecis, estes infinitos domingos.
Sai de casa, está vento, vêem-se pessoas, não se vê nada, paz, paz. Haverá alguém com quem falar? Tem de haver. Podia começar a falar com uma pessoa qualquer, claro. A mulher a seu lado, por exemplo, apoiada como ele no balcão cheio de bolos, ambos a tomar um café fora de horas. Mas tem um ar de múmia aborrecida que só deixa espaço para o desejo de lhe dar um bom par de tabefes. E ele sorri, descorado.

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