Cantam avestruzes nos poleiros familiares, o comércio fecha à uma e as donas de casa, semelhantes a cepos medievais cobertos de tecido grosseiro e pêlos, fazem as compras para toda semana, frenéticas.
Carlos desperta às duas da tarde, de repente, mas só em parte, porque sabe que não há nada a fazer, e por isso só acorda por completo lá para as duas e meia.
Tensão: ter sono e não conseguir dormir. Malditas noites de boémia, maldita vida doentia. Tensão: não querer dormir e só ter sono.
Veste-se sem se lavar e sai, com óculos escuros, que a luz incomoda-o. Indeciso, distorcido, ressacado, compra um daqueles jornais que nunca costuma comprar e lê artigos salteados e sem interesse, até que se farta, após uma cerveja, e desaparece. Três horas agora, e já está em casa outra vez. Não come nada. Não há nada a fazer. E adormece novamente, a ouvir música. Chiu. Não façam barulho. Deixem o rapazinho dormir, que aquilo passa-lhe. Pensem: “se a cidade já é grande, então há-de haver outros sítios para ir”. E vamos: nós, os que só olhamos, que só pensamos, que não vivemos. Porque — disso não duvidem — todos estes personagens respiram, todos eles estão vivos, embora roubados à realidade, e deturpados em enredos de papel. Nós não: somos abstactos, somos umas invenção dos personagens; escrevemos, lemos, discutimos tudo isto... (É perfeitamente plausível, assim, que eu me aproxime de um espelho de um espelho e, vendo-me, pergunte: “existirei eu alguma vez?”)

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