Dez e trinta da manhã, e Carlos à espera do ferry. Hoje o sol está forte, e ele põe os óculos escuros e espera. O barco vem lá ao fundo, ainda próximo da outra margem. Mais pessoas vão chegando, entretanto. Ficam também à espera. Olham uns para os outros, ou para todos os lados, ou para nenhures. Carlos ausculta-se. Descobre ele: que se sente bem. Bom, precisa de dormir. Mas os facto de ter sido tão bem tratado por aquela rapariga dá-lhe novas forças. Sim, é bom haver quem nos respeite, quem nos procure, quem nos encontre. Curioso: acha-se bom fisionomista mas já não se lembra bem das feições dela. Precisa de vê-la outra vez.
Um barco que se aproxima para nos levar determina-nos o futuro. Apressa-o. Assim está Carlos, a querer vier depressa — uma semana de repente — por causa de uma mulher. E nem sequer gosta dela, apenas a acha simpática, agradável, generosa, qualquer coisa boa e leve como estas.
O ferry baloiça, ou melhor, soluça, sobre as ondas de brincar, e o sol cintila rei, por toda a água suja, espalhada até ao horizonte. Carlos fuma um cigarro enquanto vai na brisa pela proa, a levantar-lhe o cabelo como se fosse uma bandeira. Uma bandeira negra, uma pirataria fabulosa.
Beber e comer e fumar e vomitar e foder e dançar e andar e pensar, tudo isso junto o deixou saciado e cansado. Mas ele teima em progredir, em aguentar-se a flutuar, como um náufrago numa piscina. Não ao cansaço, não ao sono, não ao tédio. Nem que venham tubarões.
O rio é evocativo, o rio é uma perdição. Mas agora já vamos longe dele. Num café, Carlos encontra conhecidos da luz do dia: são outras gentes, outros ensejos. Carlos fala-lhes na mesma. Antigos colegas de liceu. Trintões modernos. Jogos de sobrevivência para todos: cara alegre, muita paciência. Mas estão todos fodidos, pensa Carlos. Também eles. E todos os que não conhece. É uma foda geral. E mais uma, para os velhos, sempre madrugadores: já têm pouco tempo, desesperam em mil tentativas falhadas para aproveitá-lo. E falam muito, ou então não dizem nada, ou só resmungam, mas é tudo igual. E outra para os trabalhadores em circulação, os que fazem turnos, os desempregados, branco velho ou bagaço às sete da manhã- (Donas de casa. Miúdos).
Carlos, ele só, vê-se apanhado no meio de todos estes grupos moribundos, e começa a disparatar: diz coisas sem jeito, ri alto, bebe cerveja. Às tantas já nem ele sabe porque se ri, qual a grande piada. É tudo muito divertido, seja drama ou comédia. Nem mais: puro teatro.
Depois, a pouco e pouco, vence nele a necessidade de saltar para outro meridiano. Lança calor no ar e o seu balão começa a subir. Agora já sabe porque se ri: embriaguez das alturas. Mas, no fundo, está exausto. Anda a matar-se aos poucos, e os primeiros sinais de morte são essa indolência e esse riso que não descolam da sua existência. E, conhecedor do seu fim, consome drogas por causa da pressão de tais sabedorias. Por isso também consegue compreender que haja gente que escolha as soluções duvidosas: roubar, matar, mentir, as outras drogas mais implacáveis. As circunstâncias é que determinam qual o desporto a praticar. E é uma merda. (Uma merda tão grande...)
Carlos a subir a avenida, a arrastar-se para subir, Carlos a entrar em casa, a dizer bom-dia, a perguntar o que é o almoço, Carlos a pôr música, a deitar-se sobre a cama, vestido, com a persiana meio-descida, Carlos a fumar um último cigarro, adeus-mundo-cruel, a folhear um livro, a jogar com palavras, Carlos a fechar os olhos, Carlos a lembrar-se, Carlos a adormecer.

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