Enquanto alguém dorme, a cidade não pára. Mesmo que seja uma cidade de sono, em que cada rua anoitece para corredores de vento morto.
Devagar. Ainda é dia. Vá, passarada, toca a fugir das árvores: o verão já acabou, vêm aí os bonecos de neve dos postais ilustrados. Oh, este frio não é bom, não é nada bom...
Esta cidade não tem palácios que se vejam, os homens novos são mal encarados, o cemitério tem seis ciprestes e é ventoso (quem cospe para o ar, cai-lhe o cuspo na cara). Os subúrbios não são de ninguém: os edifícios têm as fachadas sujas, encavalitam-se uns nos outros como cágados num aquário sujo, o vizinho de cima toma duche todos dias às cinco da manhã. Rezam as crónicas mais zelosas que é difícil respirar aqui. No entanto, abundam os heróis comuns. E os passeios têm vinho seco, tinto, vomitado às três da manhã, agarrado a refeições improváveis que se parecem sempre com feijoada. E todos os baloiços dos parques infantis chiam. E o sol nasce de cesariana.
Esta cidade não tem padres: o clero só manobra no escuro, conspirativo para glórias antigas. Não obstante, os deuses continuam a arrastar multidões.
Esta cidade não tem reis: a nobreza toma partido, os condezinhos adormecem nas cçadas, sim, sim, pastam fêmeas, princesas...
E o povo dá gorjetas, canta aleluias nos jardins... Vai ser Natal em breve, que é sempre em breve, vai haver mesas fartas, a hipocrisia vai fazer grandes negócios.
Sábado, sábado, bruxas dançando... Uma azáfama sem fim pelas ruas, a cidade não pára. O fim-de-semana é um logro: um posto de gasolina onde se enche o depósito com combustível de terceira. As pessoas são roubadas e enganadas em tudo o que existem: é preciso pagar impostos, armazenar comida, limpar o po, ensinar a tabuada a uns filhos, mudar as fraldas a outros, é preciso comer e lavar os pratos e colocar novas prateleiras nos armários e pensar na sociedade do futuro, a sociedade do lazer, a sociedade anónima da felicidade pura e simples.
Afinal, afinal, o que é o grande tédio? Nada mais que uma protecção, tão necessária À sobrevivência como o alimento.
Carlos dá uma volta imaginária na cama, coloca o cérebro noutra posição, dentro da sua cabeça oca, é preciso sonhar outra coisa.


Quanto a nós, continuamos a andar. Um cão segue-nos. Chamamo-lo e ele aproxima-se, humilde, afável, a cabeça baixa, a cauda a abanar, o nosso melhor amigo. Assim podia ser a realidade: simples, generosa, obediente. Às vezes excede-se a si própria, e é isso mesmo: realidade ao alcance, à medida de todos. Por exemplo: “o verão não se vai embora”. Os pássaros sentam-se nos ramos das suas casas, com palhinhas nos bicos, e contam aos netos, ainda nos ovos, as aventurosas histórias de todas as suas antigas viagens. (Nunca se deve esquecer o que se vive, se bem que agora já não haja grande pressa). “Fabuloso fim de tarde”, pensam o melro, o pisco, o pardal, a andorinha...
As pessoas entram na confeitaria, passam pela secção de provas, trocam impressões umas com as outras: “os pastéis estão excelentes”, “experimente aquele com chantilly”, etc. E o café é de S. Tomé, tem um Equador no meio.
Quanto à cidade, já não tem festas: de facto, é agora uma cidade completamente festiva — fim das máscaras, fim do Carnaval, fim dos três dias de excessos: a vida, que é só dois, é muito mais importante. Há anos atrás seria ridículo, por exemplo, um homem vestido de senador romano atravessar a maior avenida da cidade às cinco da tarde. Agora, já nada disso é: estamos todos doentes de verdadeira saúde, e o próprio país parece querer render-se a esta força maior que qualquer magia. Ainda há segredos e conflitos, é certo: mas, senhoras e senhores, felizmente nada é perfeito. Todavia, já há futuro, ou, pelo menos, uma hipótese de futuro: o presente. Este. E Carlos, Carlos, acorda que se faz tarde, acorda: agora já há uma cidade e uma vida onde podes caber, livremente.

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