Entram, está tudo escuro, acende-se uma luz suavemente azulada, foi ela que a acendeu, ah, sim, então é aqui que moras, sim, os pais estão fora, de férias, ela pergunts “o que queres beber”, há uma garrafeira bem fornecida ali à sua frente, e ele responde “água”, com aquela naturalidade que ele às vezes tem, Carlos a olhar para as garrafas, sabendo de antemão que não lhe apetece beber mais, nem água sequer, quer é passar aos factos, a certos factos, até tem uma teoria para isso, se bem se lembram, e não obstante nunca a aplica, porque um homem não é uma teoria, etc.
Depois, há também aquele mundo privado, novo para si, é preciso farejar, rápido como um detective, é preciso entender: reproduções baratas de quadros famosos pelas paredes, mobiliário sóbrio, TV, vídeo, hi-fi, uma estante grande e alta com numerosos livros, sofás usados, alucinação dos movimentos, e o quarto dela, sem bonecas nem posters de namorados ao sol-pôr ou cantores pop a pingar suor ou naftalina, e Carlos diz:
— Pensei que eras estúpida.
E ela perguntou:
— O que te fez pensar que não o sou?
E Carlos respondeu:
— Não é isso, é... Pensei uma coisa — Procurou-lhe os olhos. — Agora, não penso nada.
Ao que ela replicou:
— Vou-me despir e tomar um duche. Estou toda transpirada. Parece-me que dancei a noite toda.
É assim, portanto, que Carlos a vê nua, e fica a olhá-la apenas, como se estivesse a fotografá-la com a câmara secreta incorporada nos olhos a piscar, meio-cegos, perante aquele corpo pequeno e, no entanto, magnífico.
Depois pergunta, a voz apagada:
— A casa-de-banho?
Ela indica-lha e ele entra lá dentro e debruça-se para a sanita e um minuto depois, a ver a dobrar, vomita, está ela a ligar o esquentador, mas ouve aquele som inconfundível e vem ter com ele e pergunta-lhe:
— Estás a sentir-te mal?
— Não — responde Carlos, com a ironia que lhe resta. “Se calhar é mesmo estúpida”. — Estou a ver a dobrar.
Uma parte dele quer rir, outra escuta o estômago, outra quer saber as horas, outra respira o calor que emana do corpo nu dela, outra descreve o mau sabor na boca, outra tem sono, outra pretende afastar a sujidade, e todas seriam capazes de dormir, a partir de já, dez horas de seguida.
— Queres tomar um duche, também?
— Quero.
Ela ajuda-o a despir-se. A água corre, tépida, entram na banheira, ela escorrega, ela segura-o, ficam abraçados sob a água a cair sobre eles, a água a cair sobre nós, é uma delícia insuportável, a cabeça dela toca o nariz dele, e ele diz:
— Põe a água mais fria, senão adormecemos aqui.
Lavam-se um ao outro, vagarosos, metódicos, a esponja espumosa a deslizar insistente nas epidermes lisas, as mãos a tocar os sexos como se por acaso, ela agora ajoelha-se, para lhe lavar as pernas, mas põe o sexo dele na boca e chupa-o, ele fecha os olhos desequilibra-se outra vez, mas consegue segurar-se sozinho, toda esta água clara a cair sobre nós, ele ergue-a, toma-a pelos seios, beija-a na boca, diz:
— Se calhar já estamos lavados.
Agora limpam-se. A toalha é macia, grande, para dois. Ele ainda não está a ver muito bem, mas já não tem o mau sabor. Tem o sabor da boca dela. Beija-a novamente. Ela sorri.
Vão para o quarto. Deitam-se, um ao lado do outro. Ele está de barriga para baixo, com uma mão no tufo de pêlos dela, ela que está de costas, os olhos fechados, ambos como se tivessem acabado de fazer amor e estivessem a descansar, e não como se pretendessem fazê-lo, agora que já deram os primeiros passos para isso. Amor longo, longamente descansado.
A propósito: Carlos, são quatro e trinta da manhã.
Ele diz:
— Não posso ficar.
Ela diz:
— Não és obrigado.
— Queres fazer amor?
— Quero.
— Será que posso ficar mesmo mais um bocado?
— Se são os meus pais que te preocupam, eles dó voltam daqui a oito dias.
— Tanto não, qu é muito tempo.
Riem. O tempo. As coisas que nós dizemos. No fundo, sentem-se um pouco embaraçados. De facto, o que é isso que têm mesmo para dizer um ao outro? Tudo? Também isso seria demais.
Fazem amor. Mas ele acha-se pesado, e pede:
— Vem para cima de mim.
Mudam de posição.
Pensam-se milhares de pensamentos nestes momentos.
Também ela está cansada, agora. Param. Param a olhar-se, falam enquanto se olham, olham e não sabem já o que estão a dizer, falam.
— Não te queres vir? — pergunta ela. — Podes fazê-lo.
— Estás a gostar de fazer amor comigo?
Não, sim, muito, pouco.Minúsculas palavras, as melhores.
— O sexo é importante?


— Tem a importância que lhe dermos.
— Pois.
— Importas-te que estejamos a conversar?
— Não, de maneira nenhuma.
— Então continuemos. Passou-me o sono.
— Fumamos um charro?
— Também pode ser.
Fazem o charro, e fumam.
— Uma mulher nunca sabe o que é um homem.
Ela dá uma gargalhada.
— Claro — diz ele. — Isso é o que me falta mais.
— Conhecê-los como eles são — insiste ele, às voltas com o seu “bom coração” — , não como eles aparentam ser. O pior de um homem são os seus disfarces.
— Podia começar por ti. Tu disfarças-te de quê?
— De louco suicida.
— A sério?
— Não. Loucura suicida, como e com apoteose, essa é a minha realidade.
— E o disfarce, afinal?
— Não sei. Talvez de vampiro. Sugo sangue das virgens, vivo à noite, sou de raça azul. Todavia, a luz do sol não me afecta. A minha pele é mágica, aceita qualquer cor.
— És um camaleão.
— Isso, também. Camelo e leão. Um estupor, enfim.
— Estamos drogados, e ainda bêbados.
— Sempre. E sempre à procura de de novas, de melhores drogas.
— Já não queres fazer amor?
— Já alguma vez comeste e falaste ao mesmo tempo? Para além de ser contra as regras da boa educação, não dá muito jeito. Corremos até o risco de nos engasgarmos, não é? E como são pobres as palavras, quando o que se pretende é o diálogo dos corpos. As palavras só atrapalham. Fazer amor é mais como fazer filmes.
— Era bom que não precisássemos de tantas teorias.
— Mas quem é que precisa? Só que também era bom que todos fôssemos, decididamente, mais honestos.
— Que sugeres, para continuar?
— Que apagues a luz, por exemplo.
Ela apaga.
— E que mais? — pergunta.
— Agora vou procurar-te.
— Tenho de fugir.
— Não.
— Então encontras-me já.
— Não sei. Nunca se sabe.
— Porquê?
— Porque é assim.

Comments: Enviar um comentário



<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?