ESCREVE LUÍS MIGUEL (para o seu romance)

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Vi no relógio grande da cervejaria os ponteiros a marcar a meia-noite, e pensei: “bom, cá estou eu outra vez”.
Tinha dormido vinte e quatro horas de seguida. Acordara definitivamente às dez (saíra da cama uma única vez, para mijar), estivera a ler até às onze, e então tinha-me levantado, para tomar duche, vestir-me e sair. Jantei num restaurante que funcionava até tarde, mas tudo isso era já passado, e agora parecia-me que, para contrabalançar, ia ficar acordado vinte e quatro horas. Assumi tal hipótese, aliás, como uma decisão.
Tinha feito uns negócios há dias (continuava a recusar-me a trabalhar), e havia algum bom dinheiro no meu bolso. Tal facto compensava, até certo ponto, ter gasto um dia da minha vida somente a dormir, se bem que ainda sentisse um peso algo esquisito na cabeça.
Mandei vir uma cerveja. O C., que estava à minha frente, mandou vir outra. Quase frio, nessa noite, e nós a beber cerveja gelada. Mas ali dentro esta quente, acolhedor, fumarento e luminoso, cheio de gente barulhenta.
— Vais ficar aqui? — perguntou-me C.
— Não tenho planos. Só sei que não vou dormir.
— És maluco.
— Ah sou?
É que, se eu o era, não havia quem não o fosse. Talvez alguns disfarçassem melhor, nada mais.
— Eu digo que és.
— Então ainda bem.
Ora... C. dizia aquilo por dizer. Por falta de definição pessoal.
Nesse momento, vi entrar B., o qual, até à última informação, estava doentinho, na cama e tudo, mas que agora, ali, apresentava apenas o ar atarantado do costume, a olhar para ver quem havia e a não ver ninguém. Fiz-lhe sinal, e ele aproximou-se. Pediu uma cadeira vaga da mesa ao lado, onde um casal de gordos se atafulhava de mariscos, e sentou-se à nossa mesa.
— Então, já te curaste? — perguntei-lhe, como se estivesse a falar de uma bebedeira.
Ele tem sentido de humor, mas trabalha a carvão, e é um bocado enviesado. Às vezes ri-se muito de coisas com pouca graça. Por isso, ou sabe-se lá porquê, tivemos de estar a ouvir a história toda da sua doença talvez contagiosa.
Disse-lhe, à laia de contraponto, que lera ainda há pouco uma óptima novela de ficção científica, e que o autor me convencera de que, até certo ponto, a loucura era um estado normal do ser humano. C. também lera o livro (pisquei-lhe um olho), podia confirmar. Confirmou.
Depois, naturalmente, começámos a falar de cinema, que era a paixão frustrada de B., porque não tinha dinheiro nem para ser feliz, e o cinema é coisa cara de fazer.
Disse-lhe que tinha uma história — um argumento — , óptima, e ele entusiasmou-se logo, e quis saber o que era, mas principalmente o orçamento.
— Mais caro que caro — disse-lhe. — É só para quando fores grande. Mas vou-ta contar, seja como for.
Estávamos no Carnaval, e o argumento em questão era carnavalesco, mas bom. (Julgo-o sem preconceitos, até porque nem sequer era meu). Vendi-lhe a ideia o melhor que pude. Ele continuou entusiasmado. Tornava-se fácil, ali sentados nas cadeiras confortáveis da cervejaria, a tomar copos. Éramos peritos do sonho.

De repente, achei que já não tinha mais nada para dizer. Estava era a precisar de mudar de ares.
Unanimidade de vontades. Pagámos e fomos apanhar o ferry-boat para a outra margem. Estivemos a fumar haxixe enquanto atravessávamos o rio, que estava escuro e fundo e de superfície quase espelhada. Fazia frio a sério, o barco parecia deslizar em cera fundida, e mal se notavam os motores, nem mesmo ao ar livre, onde nós íamos, às voltas.
Nisto, demos com R., que disse que ia-para-ali perdido.
— Onde é que vão? — perguntou.
— Ver as modas nocturnas — disse eu, que tenho o irritante (creio) hábito de me adiantar.
Mas ninguém discordou.
Acabei por também falar das musas do rio, das luzes da cidade que atenuavam a das estrelas, dos barcos que se cruzavam nas águas paradas da viragem da maré, da ponte que era como certa ponte norte-americna, e das sete colinas, que eram como as de uma capital europeia, outra, mais antiga, dizia-se. Nessa América distante talvez estivesse mais calor que ali, nessa ponte gémea, cars & kisses. E da outra, da mais antiga, que se via? Ruínas.
Mas era óbvio que o mundo tinha assimilado pedaços de nós, a ponto de assumi-los como seus.
Ou vice-versa. Também aqui nenhum deles discordou. Nacionalistas cosmopolitas, limitando-se a encorpar as minhas ideias de improviso com alguns comentários parolos e risos. No fundo, todos eles sabiam que eu era um doido razoável, que escrevia livros que acabavam numa gaveta qualquer, com as traças a lê-los.”

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