FALA O CARLOS

É tão difícil fazer de estúpido como de inteligente. Mas, no meio, que se é?
Ando a fumar o supra-sumo de uma planta maluca para ver se me excedo. E fujo, fujo, mas cada vez mais para dentro de mim. Um dia destes peço socorro e já não me faço ouvir. Ando a destruir-me, desta e de outras formas, e, provavelmente, a solução da charada encontra-se no pólo oposto, irónica.
E isto é de tal modo que, de vez em quando, vêm pessoas ao meu encontro, para falar comigo, perturbadas, ainda bem que te vejo. São seres do meu tempo, esses que se confessam, como se eu tivesse linha telefónica directa para algum deus da magia fácil. Não será o caso, eu sei, eu compreendo. Mas tudo isto só me leva ao riso, porque sou o último dos ignorantes. Devo ter, no entanto, silêncios sensatos, ou um olhar particularmente atencioso, porque me agradecem toda a minha compreensão, e toda a minha boa vontade, que não passa de uma expressão da minha condescendência.
Às vezes, a meio do dia, acontece-me explodir em gargalhadas de origens misteriosas. Não sabia a que se deviam, mas agora já sei: é a memória desse meu confessionário ambulante. As desgraças humanas. As paisagens iguais.
Digo: “oiçam o poeta”. Estou a gozar.
“Qual?”, perguntam-me.
“Todo o que o seja”, respondo. E estou a falar a sério.
Mas estávamos a falar de drogas e destas noites de cristal, não era? Então eu conto, isso e o que mais houver:
Vamos no ferry pata-choca a fumar os nossos cigarros para rir e a pensar e a falar. Alguém espreita o rio e diz:
— A água não tem cor.
— Exactamente — confirma alguém.
E pronto, de repente o teatro está montado: agora já podemos dizer e fazer tudo, como as crianças (de outro mundo): tudo flutua à superfície da luz, até mesmo o que vai mais fundo. Uma água que não tem cor é, sem dúvida, transparente.
Chegamos então ao outro lado do rio, à cidade grande. (Neste ponto do percurso cheira-me sempre a desolação). E vou cego, como de costume. O meu maior desejo é chegar — chegar a algum sítio real, uma vez quer seja.
(Penso: “sou Negro”. Porque tenho dos negros: a exactidão moral; os costumes dissolutos. Ou vice-versa).
Vistos destes ângulos, os polícias acabam por ter a sua graça: são decorativos — equiparáveis aos taxistas. E aos porteiros dos bares, cocainómanos com cara de buldogue.
— É entrar, é entrar.
“Mas portem-se bem”, avisam eles com o olhar. “E portem-se bem gastando muito”.

Que se lixem os dramas. Música, mulheres e cerveja. A discoteca pequena onde cabe toda a gente. Dancem, dancem. É preciso suar, é preciso odores a suor no ar. A monótona e hipnótica secção rítmica comanda a orgia, por sugestão. Na semi-obscuridade das luzes faiscantes e pendulares desenrola-se uma vez mais a mítica encenação da ritual dança sexual dos humanos.
Sou bem do meu tempo: compreendo perfeitamente a essência destes ritmos fortes e alucinados. A electricidade. O ruído.
Esta loira que dança à minha frente toca-me: o rosto, com os cabelos — e, com as nádegas sedosas, a minha mão solta, suspensa do braço apoiado no balcão.
Esta outra, morena, espiralada, procura quem lhe pague mais uma cerveja; roça-me com o seio direito, solto sob a blusa. Agarro-a com força. Ela deixa-se apertar, sob os meus dedos insinuantes.
Agora estou a falar para uma embriagada sóbria, transbordante de felicidade infeliz. Ela passa sem ouvir, sorriso patético, em transe — o ritmo comanda, lembrem-se, o suor a aflorar a luz.
Ver e ser visto. Ser diabólico. Ser invisível. Vou circular por aí. Vale tudo? Pois. Também poderia dizer: estou cansado. Mas para quê? Quer eu queira quer não, a vida está cheia de esperança. Podia até contar-lhes algumas histórias acerca disso. Não é de histórias que vocês gostam? Mas fica para outro dia. É que se, de facto, estou cansado, então é preciso que descanse. Vejamos. Ora vejamos bem.
Dancemos. Apenas.

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