FALA UM DESCONHECIDO

Eu sou natural aqui da cidade. À noite gosto de passear sozinho. Vejo as pessoas passar, passo por elas. Vem gente de todo o lado aqui para o néon, à procura de excitação. A vida nas grandes cidades é só isto, afinal, digam o que disserem: ritmo forte e alucinação. Mas quando me falam em folia, em festas e loucura, eu digo: “Ah sim? Mostrem-me então uma pessoa feliz”. E ninguém mostra, essa é que é a verdade. É preciso que diga: eu. Porque eu sou feliz, acreditem. Querem saber o que é que eu faço? Não lembra nem ao diabo. Para mais, ainda tenho praticamente toda a vida para viver. Calma, eu digo: sou coveiro. Foi o que se pôde arranjar. Um coveiro é um tipo que trabalha num cemitério, a abrir covas para enterrar os mortos. E todos os dias os há: chegam com as famílias de baba e ranho, de negro vestidos, de fim-do-mundo, dentro de caixas de madeira, caixotes artísticos, mortos de todo, e depois alguém diz uns louvores e umas saudades e lá vai a caixa para o buraco, depressa que já está outro à espera, ou talvez não haja, mas o espectáculo não é grande coisa, mais vale chegar-lhe depressa ao fim. Depois o coveiro, que no caso sou eu, pega na pá e vá de atirar-lhe com terra para cima. Sobra sempre alguma, claro, que eu componho muito bem, por cima do buraco já tapado, que é para depois os familiares porem retratos, colados a pedaços de mármore também artísticos, e flores, que vão indo de verdadeiras a imitações em plástico, conforme o tempo vai gastando a memória. Por causa das flores é que os cemitérios são sítios airosos e alegres e tranquilos, principalmente quando não está por lá alguém a carpir. É pena é que não haja música ambiente, de vez em quando. E um bar. Já falei disso a quem podia fazer alguma coisa, mas não me deram ouvidos. E pronto, é isto que faço. À noite não,claro. Quem morre à noite tem de esperar mais um bocado, também não lhes custa nada. À noite é como já sabem, venho quase sempre para aqui, para o lado dos bares e das boîtes e das discotecas, onde há mais luz e movimento. Conheço os polícias, os taxistas, as putas, os chulos, os clientes habituais. Eles também me conhecem, já faço parte do folclore, e por isso ninguém me chateia, porque sabem que não estou aqui para lixar a vida a ninguém. Vejo as pessoas a passar, vejo a vida nelas, delas, sinto o tempo a passar e fico a saber coisas que só assim se sabem: que a cidade é miserável e que a vida das pessoas é miserável, cheia de ilusão e sem ilusão nenhuma. Às vezes lá consigo uma conversa; não tenho nada para dizer, e por isso falo. Um homem tem de aprender a distrair-se, mais ainda quando a sua forma de comer vem do trabalho de enterrar os mortos. É um bom trabalho, gosto muito do meu cemitério.

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