Olha olha, chegou o Luís Miguel, que anda a fazer-se escritor. Dele são as palavras: dêem-lhe um mote que logo sai história, romance, ou teoria complicada.
Fazem-lhe sinal, braço ao alto, e ele vem sentar-se com eles, olá, olé. Aí estão os cadernos da arte em cima da mesa.
— Então o teu livro? — adianta-se logo a Anabela.
— Qual livro? — responde Luís Miguel.
— Deixa ver — pede Carlos, pegando num dos cadernos do outro. Lê, em voz alta: — “Heróis”, super-romance, por Luís Miguel, criador artístico, 1999.
— Não inventes — diz Luís Miguel.
— Está bem, vou ler só para mim — diz Carlos, num tom misturado e falso de amuo e mistério.
Capítulo Um. Começa a ler, um primeiro parágrafo muito longo, com escassos pontos finais pelo meio. É preciso acender um cigarro, ir bebendo a cerveja aos poucos. Comecemos então, de facto. Blá, blá, blá, blá, blá blábláblá. Um tilintar mais agreste, à esquerda, e é um copo a partir-se no chão.
Já se perdeu. Tem de recomeçar. Agora lê dez linhas de seguida, sempre a tentar perceber, sempre com a impressão profunda de que alguma coisa, algum significado profundo lhe está a escapar mesmo frente aos olhos. Reconhece poesia, devaneios — a evocação de algumas sensações que também são suas, talvez — , mas nada mais. Como se não soubesse ler, ou o texto estivesse escrito em outra língua, pouco mais que desconhecida.
Recomeça ainda uma terceira vez, mas acaba por desistir à vigésima linha. Mas sim, com certeza, Luís Miguel tem jeito para aquilo. É mesmo escritor, qualquer um o percebe logo. Carlos fecha o caderno, poisa-o sobre os outros e diz:
— Vai sair obra-prima, não duvido. Qual é a história?
— Não tem.
— Então?
— É um romance a andar de cá para lá.
Porque dá muito trabalho, inventar uma história. E a realidade, essa, já tem confusão que baste. O que é preciso é ir olhando e escrevendo. Porque quem escreve histórias são so velhos, que já não têm tempo nem paciência para se meterem noutras coisas, ou então os rapazinhos e as rapariguinhas precoces com avózinhas dos contos de fadas.
— Não se aprende nada com vocês — protesta Anabela.
— Bebe mais uma cerveja — propõe-lhe Carlos, bem-humorado.
— Vou jantar a casa da Paula — diz ela. — Ficam?
— Eu vou jantar também — diz Carlos.
Enquanto Luís Miguel fica mais um pouco, a escrever, provavelmente acerca do chinfrim nos grandes cafés suburbanos e da superficialidade das relações humanas.
Anabela vai agora rua abaixo, e Carlos rua acima, porque a vida é assim mesmo, a vida faz-se na estrada e as estradas têm dois sentidos, e qualquer um só caminha quando o faz pelos seus próprios pés.
Ainda vai longe de casa, o Carlos, mas já lhe cheira bife. Sim, aposta que é bife, que é batatas fritas, que é vinho tinto e pão e sopo e fruta. Aposta porque sabe. É um espertalhão. Um idiota. Contudo, esta ideia da comida quente e pronta a comer reconforta-o, e ajuda-o a acreditar no inacreditável, ou seja: que ainda é possível sobreviver, que a vida não é um drama sem solução, que o amor pode surpreender o viajante numa qualquer esquina.
Olá, olé: um rosto desconhecido num autocarro a passar. “Um rosto desconhecido num autocarro que passa”. E um ruído de travagem: olhares súbitos, como sempre, à prucra de sangue. Sempre humanos.
Por cima das nuvens, só os aviões, os satélites e os super-homens. Mas talvez viver junto ao chão também tenha as suas vitudes.
Não, de nada serve ter sonhos e ser homem.
Entra em casa e entra no seu quarto e põe música a tocar baixinho e despe a camisa e abre a janela e acende um cigarro e fuma.
É bife, é pequeno-burguês, é remendo, poupança, é luxo do estômago, modéstia do sonho, dias a seguir a dias. É o pai, que está de férias e por isso não faz a barba, e a barba vai crescendo, fina, branca, mas despida de qualquer encanto ou sabedoria, porque a imagem não corresponde ao homem. Está velho, eis a questão. Um dia destes reforma-se, e então começa a passar as tardes nos bancos dos jardins e das praças públicas, à espera da morte. Será o tempo de Carlos o odiar. Por enquanto, faz despertar nele um vago sentimento de piedade, e Carlos, perante tal impasse, só consegue odiar-se a si próprio.
Batem-lhe à porta do quarto. É a mãe.
“A comida está na mesa”.
A mãe-galinha, a mãe-formiga, a mãe-sombra, sempre de um lado para o outro, sempre a descobrir qualquer coisa para fazer, sempre a silenciar-se de repente para pensamentos semelhantes a circunferências.
“Já vou”.
Atira a ponta do cigarro para a estrada. Vê-se ao espelho. Sente-se feio. Dantes, ainda tinha algo: um brilho, uma clareza. Mas o que ele vê agora é o rosto de um estranho, e esse rosto está doente, e a doença está fora do catálogo.
Já escurece mais cedo.

Diz boa-noite e senta-se à mesa. A televisão está ligada. Um locutor conta as histórias do dia que está a chegar oa fim. Tiroteios, bombas, manifestações, incêndios, negócios. É tudo mentira. Assistência social, o próximo ano lectivo, trocas de galhardetes, discursos e iniciativas promocionais. Mais mentiras. E de nada serve sabê-lo.
“Não gosto de polícias”. Carlos, sozinho em si, vais pensando as suas listas de Sim e Não. É preciso praticar: saber do que gosta e do que não gosta há-de ajudá-lo a chegar a alguma definição.
Fim da sopa. (Definição da indefinição).
E regar a carne com vinho, que o molho é fraco. “De beber gostas tu”, diz-lhe a mãe, quando ele enche o copo segunda ou terceira vez. Pois sim. Mas é porque precisa de calor no sangue, que quando o que corre nas veias é água um homem fica igual a camelo.
Etc. Não, não é nada disso. Filosofias do pai, de mil pais assim, que Carlos aprendeu para não lhes entrar no jogo, entrando. É parvo mas não é parvo. O álcool deprime o sistema nervoso, mas, até chegar a isso, vai soltando o riso nos olhos. E quem se ri sem usar os olhos é porque continua triste. Então, que se alegrem os olhos, e que seja o que deus quiser, ah man.
Come à pressa, dez, quinze minutos. Foi o que aprendeu com essas grandes instituições perdidas no tempo, a família, os militares. Come à pressa para não aturar as más digestões dos outros.
“Então e a fruta?”
Tira uma maçã da fruteira e enfia-a no bolso do blusão. Lava os dentes e mija e diz boa-noite até logo. Até amanhã seria mais preciso. Mas não vale a pena, já sabem bem como é.
Na rua, passa por um puto pé descalço, ranhoso, e pergunta-lhe:
— Queres uma maçã?
O miúdo aceita.
“Agora estás lixado, seja original ou não, o pecado. Mas que se foda, puto. Vá, come: quem pode matar a fome tem um bem”.
E avante. Vamos lá então procurar as manadas da noite em festa, os loucos animais com sede e cio, que também esses são apetites a saciar.
Aí está ele, a meio do caminho, no mesmo café da tarde, o segundo, os velhos a jantar sabe-se lá onde.
— Então? — É o Cipriano. Tem uma cicatriz na face esquerda. É dealer. A retalho.
— Tens haxixe? — É o Carlos. Tem uma cicatriz numa neura qualquer. Ainda não é nada de concreto. Está de passagem.
— Vou tomar uma cerveja — diz o outro. — Tem calma.
Yes yes. Calma. “Vai-te então, ó estúpido, vai-te foder que eu espero”.
À espera. Olá, olé: é, a passar, a dez metros, uma das mil e uma jóias eróticas e provincianas da cidade, os olhos bonitos, os lábios vermelhos, as pernas compridas. É sempre a mesma coisa, ou não será? Vistas de longe, as pedras preciosas terão todas um brilho semelhante, sejam elas diamantes ou rubis ou esmeraldas ou? Assim se perde ele a olhar as mulheres e as raparigas, que são muitas, em subtis re(vira)voltas adejantes, mil vezes já vistas e revistas, pois são as mulheres e as raparigas de todos os dias.
Agora o negócio proibido já está feito. Calma e descontracção. É preciso continuar a descer a avenida. Quem não vai até ao fim nunca chega a saber.
Dez minutos depois, começa a sentir o cheiro do rio próximo e do marisco nas cervejarias turísticas. Entra numa, senta-se, pede uma cerveja ao empregado, que o cumprimenta, boa-noite, como está, não há que espantar, é cliente quase diário, sim, está como de costume, com vontade de se embriagar e rir e fazer amor e vomitar e rir outra vez. Está sentado, semi-reclinado, absorto. A tratar da sede. Um bocadinho melhor, obrigado, desde a última, pois, pois é.
Onze horas, e vai chegando mais gente, para beber cerveja e contar mais histórias, tão boas como as da semana passada, ou até talvez sejam as mesmas, mas é a sua vida, nem mais. Sempre iguais.
Messieur cabelos-no-peito diz eufodieaconteci&tal. Messieur rocanderróle (isto é suburbano, industrial, o som é duro), trauteia para Messieur-o-pintor a sua última melodia, só para que os ouvidos virgens se vão habituando. Madame-university faz, alto e bom som, o auto-de-fé daquela sua muito amiga que, não obstante, é insuportável, ou não andasse a querer roubar-lhe o namorado. Messieur-photo, Messieurs-teatro, Girls Plastic, oh.
O ar está muito artístico e concorrido, ou não fosse sexta-feira, começo de mês, dinheiro fresco. Até o Luís Miguel, lá ao fundo com uma rapariguinha e sem os cadernos sacramentais. Devagar, como quem não pensa nisso, vai-se praticando a caça erótica, o lançamento desportivo dos anzóis, os olhares sinuosos e cheios de significados cabalísticos. Oh, sim: chupa-me, garota.
E ri-se o Carlos, ri-se o Luís Miguel, A Nossa Senhora de Pitos-e-Mangalhos, toda a gente a rir, é uma festa, deve ser, tem de ser.
Sim, como o tempo não pára e as portas comerciais pelo caminho se vão fechando, toda a população viciosa acaba por vir acampar aqui, na Penúltima Estação, antes da travessia do rio, a fumar haxixe, a beber, a discutir, a conversar, a aborrecer quem passa ignorante, a cantar, a ver as luzes marginais na outra margem.
— Que horas são?
— Paga-me um copo.
— P’ra onde é que vais hoje?
— Mais duas canecas.
— O caralho.
— Viste o Black?
— Eu só quero saber...
— Não me chateies.
— Foda-se.
— Hã?

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