PIEDADE PARA OS HOMENS, por Luís Miguel

Ela é jovem, bonita e tem um corpo magnífico. Acaba de sair da escola nocturna, sozinha e de cabelo ao vento, como se fosse ela própria a primavera. A noite está fresca, mas não a sente: tem dentro de si um calor estranho, que lhe humedece os lábios carnudos e lhe revigora as pernas altas e perfeitas, a saírem com meia pretas da mini-saia de cabedal. Hoje é sexta-feira, dia bom para dar liberdade aos sonhos. Vai a descer a rua, dona de si e de tudo, princesa numa fábula que alguém inventou algures, na obscura sala de um qualquer cinema de bairro. Está com alguma pressa: sexta-feira tem noite de esquecer livros e professores e mundos inteiros para aprender, tem noites de beber e dançar, tem noite de corpo à solta. Acena a alguns conhecidos pelo caminho, compra cigarros num café já a fechar, onde os homens da bebedeira a mastigam de alto a alto a baixo, com os olhos pequeninos. Já está acostumada.

À entrada do bar vai a azáfama habitual das noites de sexta. Já passa da meia-noite quando ela chega. Cumprimenta o porteiro e entra. Conforme vai avançando pelo corredor que leva à pista de dança, a música cresce, entra nela, e então, de repente, explode, através das luzes nervosas e dos corpos que se agitam.
Senta-se ao balcão e pede uma cerveja. Logo um rapaz se acerca dela. Beijam-se nas faxes, trocam algumas palavras, riem-se. Ele poisa uma mão num ombro dela; depois, acaricia-lhe o cabelo, e sussurra-lhe qualquer coisa ao ouvido. Tornam a rir-se. O rapaz afasta-se, outro toma o seu lugar, as cenas repetem-se. Ela acaba a cerveja e vai dançar. Uma sensível clareira abre-se na pista para que se possa mover à vontade. Os homens querem vê-la.
Um fio de suor começa a correr-lhe o rosto, consoante a música vai crescendo e ela se lhe entrega, e aquela gota de líquido transparente e salgado parece encerrar na sua fluidez a profundidade da promessa de coisas mais concretas: as pernas dela, de uma suavidade de mármore polido, os seios que parecem querer saltar-lhe da blusa, a boca entreaberta, os olhos fechados, o cabelo selvagem de feiticeira moderna. Até as outras mulheres reconhecem que é preciso dar-lhe mais espaço, porque ela está a arder, é uma mulher em chamas.

Dela se poderia dizer que é a dona dos homens. Eles rendem-se-lhe sem combate, e ela bebe, ri, deseja. Está agora sentada ao colo de um rapaz alto e musculado, que não bebe nem diz nada, como a rã inchada da história, só a acaricia. Sentem-se um ao outro através das roupas, e ela pensa: “pobre rapaz, pobre bruto”. Porque sabe que ele é estúpido, um estúpido cheio de músculos e de vontade de sexo. Todo esse desejo vivo, no entanto, ali tão próximo, só lhe provoca ansiedade. Mas, simultaneamente, atiça o seu próprio fogo, de um modo tão súbito que ela não consegue explicá-lo.
Poder-se-ia dizer que se sente próxima da felicidade, em momentos assim. Sente que é necessário haver alguém que ame todos aqueles corpos de guerra com pouca alma, e julga-se a escolhida. Envolve-se de tal modo nessa crença que chega a ser capaz de não deixar de pensar, entretanto. “Pobres rapazes, pobres brutos” — como eles têm necessidade de porem os seus cansativos sexos em toda a vida, frenéticos, rápidos, pesados. E, todavia, também ela reconhece em si esse frenesim de abrir o corpo à instantânea brutalidade do prazer. Daí os seus sentimentos piedosos, directamente nascidos da própria luxúria da situação: juventude, liberdade, embriaguez. Apetece-lhe dizer: “vem, bruto, meu filho; faz-me amor aqui mesmo; vá, porco, foça nesta pérola que te cega, encharca-me de ti de alto a baixo, porque eu entendo-te, e por isso permito-to”. No fundo, é como se dissesse, porque pensa: “oh, como é delicioso o peso desta carne firme e sem miolos, como é inimitável a indiferença, o odor, a cegueira de todos estes homens que se deixam seduzir por bonecas, homens tão egoístas que só reconhecem o prazer das mulheres porque esse é mais um motivo de orgulho para eles mesmos. Não há homens mais sinceros que estes. Só através deles uma mulher se pode permitir sentimentos intensa e absolutamente humanos. Não, amor não — somente uma paixão ditada pela carne, o corpo jovem, a fome de sensações brutais e imediatas”.
Sentado ao colo de um homem, nem por isso os outros se proíbem de a olhar. Que interessam as outras mulheres, flores murchas, freudianas do que a mamã diz? Sim, ela sabe muito bem até que ponto vive nelas a inveja. “Azar, meninas, azar”, pensa, com riso e pernas abertas, a cabeça a agitar num momento supremo a juba felina do cabelo iluminado, ela e só ela, absolutamente certa de que só o sol nasce para todos. Não a beleza. Não a sensualidade. Não o animal livre.
Dançamos? Dançam. O homem beija-a, e ela sente-se a fugir do chão- Abre os olhos, surpreendida. Mas não é senão ele a erguê-la no ar, enquanto dançam. Ri-se mais. Adora rir, e sabe bem como esse riso franco e cristalino pode provocar a loucura. No meio do fumo de tantos cigarros sempre a arder, através dos perfumes caros e baratos, o odor que impera é, no entanto, esse: o do sexo. Um odor escancarado, febril, embriagante. O odor pelo qual todos se encontram ali, com os olhos mais abertos do mundo, na ambígua obscuridade — porque se vê, porque se pode tocar-lhe.
Quando se gosta, o tempo voa. E agora ela desliga o sonho que o seu corpo e o seu desejo e a sua fantasia inventaram, e diz que já é tarde, e que tem de ir. Mantém-se sedutora e atenciosa, mas o rosto é já outro: passou de rainha louca a rainha somente.
Oh, ela é a dona dos homens. Acaba de beber e diz: “vou-me embora”. E vai, avança corredor fora, o passo decidido. Despede-se do porteiro e entra de novo na noite absoluta, a noite das estrelas e dos segredos. O homem, ainda junto a ela, acompanhando-a como uma sombra, tem o coração pequenino. Mesmo assim, não sabe o que lhe há-de fazer. Provavelmente, conquistaria o mundo. Bastaria um gesto dela. Mas ela não o faz: basta-lhe saber que poderia fazê-lo, se quisesse. Coração pequenino, grandes estremecimentos. E como ela se sente bem, boa, piedosa.... Compreende perfeitamente os homens. Coloca-os sobre o pano verde e joga-os. E ganha sempre.
Outros homens que, entretanto, também saem, olham-na agora a outra luz, mas reconhecem que a mulher é a mesma — fêmea louca, lagoa de águas quentes. O que esteve com ela ao colo despede-se com um beijo longo e profundo, ansioso de muito mais. Ela sorri, dança para ele ainda mais alguns passos, um instante, e desaparece, dentro do carro de alguém que lhe oferece boleia até casa. Mas toda a gente sabe que, na próxima sexta-feira, ou até antes, talvez, se for esse o seu capricho, ela aqui estará novamente, eterna como uma deusa, e nos corações pequeninos de todos estes guerreiros da última hora, príncipes sem reino, novos e melhores planos de conquista começam já a ser forjados. Perante ela, dona dos homens, não há homem, pensam eles, que não possa vir a ter a sua oportunidade. E vale a pena, não há dúvida, porque ela é realmente uma mulher de sonho, uma mulher magnífica, um sonho que ri, perdidamente, piedosamente...

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