Portugal é europa, é na europa, quem o poderia saber? Portugal não existe, e a cerveja às vezes é alemã, ou parece água, não tem sabor. Carlos agora é europeu, português, homem sem fronteiras, é topa-a-tudo.
Hoje está dia-pastel como só alguns de outono, bom de saborear, não se consegue ficar em casa, e aí vai ele até à esplanada do costume, beber e ver pessar, gente, carros, e coisas no pensamento.
Buracos nos bolsos das calças. A cara velha dos pais ao pequeno-almoço. Quem lhe dera a bebedeira de não beber, de não saber, não acabar os seus dias com alma de português. Se quisesse acreditava, europeu e feliz, mas não lhe apetece. Ele sabe. E que se lixe. Que se foda, a europa e o resto. Topa-a-tudo, talvez, mas parvo não. Nada de bandeiras. A sua oportunidade há-de surgir. Ei-lo à espera, atento. Só há uma para cada pessoa, pensa ele. E talvez pense bem. Na fábula, ao fim, tanto morrem as tartarugas como as lebres. Há-de ver-se. Será como estalar os dedos.
“Ó empregado, trás lá então mais uma cerveja, dessas que só servem para mijar.”
Tem um livro sobre a mesa, mas não lhe apetece ler. E dá por si a olhar as pernas da mulher nova na mesa em frente, sozinha, a folhear um jornal, daqueles que dão para um dia inteiro, um semanário, cinco quilos de papel de terceira, as pernas excelentes cruzadas, a mostrarem-se até meio das coxas, em frente, em frente, cenário, luzes, agora as mulheres são todas grandes atrizes na grande comédia da tusa, e o mundo é o nosso palco. Melhor assim, e que se lixe, não há nada a fazer. As pessoas são como são, e a vida é como é.
Para o sexo também tem uma teoria: o mínimo de causas para o máximo de efeitos. Não perder tempo, nem dinheiro, nem palavras. Sorrir um pouco, talvez, e dizer, enquanto se acende um cigarro, ou apenas se está a olhar: “Vamos?” Mas depois não é nada disto: é mesmo sorriso só, moral a espreitar, conversas desencontradas. Festa às vezes, enfim, quando os olhos brilham. “Vamos?” Os olhos olham. Vai-se.
Carlos podre de chatice, às três da tarde. Carlos-pronto-para-a-vida. Carlos romântico, em pose de fotonovela, que já é um homem, e um tipo também tem de jogar com o cenário, cenário para a paisagem, para o formigueiro humano, para as pernas dela, na mesa em frente, a ler o jornal, atenta, trinta anos, provavelmente um pouco frustrada. É como ele diz, está-se sempre a inventar.
“Deixa a mulher em paz. Fica-lhe só com a imagem das pernas, a fugirem da saia apertada. Para te lembrares mais tarde, por exemplo. Para imaginares um poema: a poesia do sexo perfeito.”
Carlos boceja, são três e trinta, levanta-se, paga as duas cervejas que bebeu e aí vai ele de novo, agora rua abaixo. Vai de óculos escuros, o livro entalado no sovaco, a fumar, com as mãos enfiadas nos bolsos, a tocar-se na pele pelos buracos. Pobrezinho mas honrado. Quando for grande, alcançará a América. “Vá, filho, continua a nadar.”
Agora, rua abaixo, e é como se estivesse numa ilha: conhece toda a gente, nem que seja só de vista. E as crianças estão a crescer. E a vida é assim, meu filho. (Continua a nadar).
Montras. Roupa interior e máquinas fotográficas. O barateiro dos sapatos de sola de borracha. Móveis. Croissanteria. Pizzaria. Plásticos. Tintas. Últimos modelos. Mais pernas de mulheres, passeio acima-abaixo, a cruzarem-se com Carlos. Bendita invenção, a mini-saia, o verão sempre a recomeçar.
Tenta compreender qualquer coisa de uma coisa qualquer, mas tem a cabeça vazia, cheia de barulho, e nada a enche. Barulho, apenas: engrenagem de desenho animado desanimado. Hoje à noite vai apaixonar-se, com certeza. É sexta-feira, e todas as semanas lhe acontece o mesmo. Mas já festejou o aniversário, já apanhou a sua grande bebedeira anual. Devagar, pois, ó paixões, é apenas mais uma noite cheia de lua. Uma noite boa para dançar.
“Porra, tantos europeus. Deve ser alguma praga.”
Dá consigo noutra esplanada, a beber mais cerveja, com magotes de velhos a grasnar à sua volta: a morte lenta, um medo horrível, a repulsiva inveja dos outros, dos que ainda têm toda a vida à sua frente.
Um deles pergunta-lhe as horas. Faz que não ouve. Não quer ser mais nem menos que bem-educado. Em silêncio, é como se pedisse que lhe respeitassem o seu desejo de não falar. Mas as pessoas não se entendem: basta que se veja o que fazem com as palavras. E o velho torna a repetir a pergunta.
— Não sei — diz Carlos. — Não me chateie.
— Estou a perguntar-lhe as horas — insiste ainda o outro, que deve ser surdo.
— E eu disse que não me chateie.
Não, nunca há-de ser velho, decide Carlos. Volta-se para o lado contrário. Que se lixe. Os tempos vão difíceis, até mesmo à sexta-feira, um tipo não pode ser bom, um tipo tem de ser topa-a-tudo, nos tempos que correm, são tempos difíceis.
Carlos, às vezes, receia começar a chorar, assim de repente. Percebe tudo muito bem. Antes não percebesse.
A mãe: “que vais fazer da tua vida?”
Ora, é fácil: vou ser herói, vou alcançar o topo da fama, vou fazer uma cruzada a favor da felicidade. Uma Guerra Santa.
“Não sei”.
Pois que há-de ele dizer? Não sabe, eis a verdade. Anda a pensar. A aprender. A tirar um curso sem diploma. Vai montar um bordel na cidade. Leu isso num livro, pareceu-lhe uma boa ideia. A vida é um livro cheio de boas ideias a cores, a vida é um livro cheio de mortos a preto e branco, a morte é um livro em branco, a morte é uma ideia. Assim, outro fosse ele e já teria morrido, por vontade própria. Mas Carlos não: anda a topar — tudo, de preferência.
“Suas putas, seus cabrões...” Se fosse do espectáculo, seria sempre esta a sua entrada. Como não é, sai da esplanada e entra no café, a ver quem está e quem não está, olá olá olé. Descobre uma amiga, sozinha numa mesa redonda. Descola-se do varandim que separa a sala de cima da de baixo, desce as escadas e vai ter com ela. Olá, olé. Senta-se. Então? Conta coisas.


— Conta coisas.
— Estou para aqui a estudar o código da estrada....
— Vais tirar a carta?
— Vou. Mais uma mulher ao volante.
E ri-se, coitada. E coitadas das mulheres, que nunca mais se habituam a ser.
— Faz jeito — diz ele, por dizer.
— O quê? Mais uma mulher ao volante?
Ahahah.
— Não sei.
— E tu?
— Tudo bem.
— O que é que andas a fazer?
— Tempo.
— Para quê?
— P’ra nada.
— Estás à toa.
À toa. Está à toa. Deve ser isso.
Ela chamas-e Aurora. Tem um incisivo cariado. Uma nuvem, lá fora, apaga momentaneamente o sol. Tudo condiz com tudo, a realidade não-humana tem bom gosto.
— Quando é que arranjas esse dente? — pergunta ele.
— Quando tiver dinheiro.
— E entretanto vai-se andando, não é?
Ela encolhe os ombros, com um sorriso amarelado.
— Bom, deixo-te em paz — diz ele. — Para estudares melhor.
— Não me incomodas.
— Ainda bem.
Mas levanta-se e sai. Não se sente capaz de ficar parado. À porta, dá de caras com uma Anabela de outros tempos e outras voltas, olá, olá, então?, contemos coisas, três polícias, cento e vinte carros brancos, doze bancos de madeira pintados de vermelho, e lá estão os velhs, mais velhos, só velhos.
— Então? De férias ou a trabalhar?
— Férias. Mais uma semana.
— Cheia de sorte. Não vais à praia?
— Já não está tempo para isso.
— Hoje tem estado.
— Não tenho companhia.
— Acontece.
— E tu, o que é que fazes por aqui?
— O que sei fazer melhor. — Carlos sorri. — Nada.
— Ah, pois. Como é que está aquilo lá dentro? — pergunta ela, referindo-se ao café.
— O costume. Pessoas. Barulhento.
— Ando farta disto tudo.
— A culpa é dos velhos. Os velhos atraem as moscas, e as moscas não nos deixam em paz.
— Coitados, não fazem mal a ninguém.
— Coitados? Neste país, cada vez que alguém pensa ou tenta fazer alguma coisa, surge logo um velho para impedi-lo. Coitados? Coitada de ti e coitado de mim, diz antes.
— Não é tanto assim.
— Pois não. Isto é mania minha, que odeio os velhos. E todas as gerações são perdidas, etc.
— Estás a falar para aquecer.
— E fala-se para outra coisa?
— Não me chateies, estou de férias.
— Pois sim.
— Pronto, eu calo-me. Vamos beber alguma coisa?
E vão, e bebem, e já estão a falar outra vez, a sua conversa de nadas. Aurora ainda lá está, concentrada no seu grande estudo. Tem umas boas mamas. Ainda há-de ver isso melhor.


Comments: Enviar um comentário



<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?