Às seis e meia da tarde, algumas sensações desagradáveis começam a incomodá-lo. Primeiro, sente frio. Abre um olho, só um pouco, e vê o céu de cinza escura através da janela semi-aberta. Segundo, sente a cabeça pesada. Tem o rádio ainda ligado, e um tipo qualquer de voz grave debita o noticiário, a uma velocidade incrível. Está deitado de bruços sobre a cama. Estende um braço e desliga o aparelho. Silêncio. Alívio. Mas, terceiro, sente-se sujo, e tem a barba por fazer. E fome. E a boca seca. Não almoçou, ressacou, sente-se esfarrapado. Sabe, todavia, como remediar a situação. O que precisa, antes de mais, é de coragem para se levantar. Coragem, meu filho, pai de ti próprio.
Senta-se e arrepia-se. Depois, zombie casa fora, liga o esquentador e respira fundo na casa-de-banho, a fazer a barba, e corta-se, e amaldiçoa a lâmina dupla para um duplo golpe e a água pouco quente. Mesmo assim prolonga o duche por meia-hora, sempre à espera que alguém o amaldiçoe a ele, pelo esbanjamento. Mas nada. Devem estar distraídos.
Agora já tem os poros limpos, já é o homem novo. Vá, roupa lavada e não se pensa mais nisto.
Senta-se depois na cama, a cortar as unhas, um pé a marcar o compasso da música que pôs a tocar no gira-discos. Vê-se ao espelho, numa olhadela fugaz. Sempre a mesma melena despenteada. Boceja. Abre um livro de banda desenhada. Peripécias. Assume a pele do herói: há sempre uma mulher que vale a pena conhecer, e assim já se justifica a melena rebelde. Acende um cigarro. Acordar, acordar: parece-lhe que há uma parte de si que adormeceu para sempre, esmagada sob um peso que ele não previu, porque não é seu, mas uma imposição, uma ironia do acaso, que escolheu para agentes os que lá dentro, ao jantar, a todos os jantares e almoços e em todos os outros momentos, o hão-de olhar uma vez mais, vezes de mais, com aquele sempre igual ar acusatório, de meio-desprezo, intransigência, surdez, cegueira, pequenez, sujidade — pesadelo de liberdade condicional, toneladas de chumbo a enclausurar o pensamento, tenebroso acaso, absurdos agentes —, embora o que mais custe seja essa lucidez de homem que sabe que o estão a matar, e sabe que vai morrer, e não pode fazer nada, mesmo querendo fazer, mesmo com tanto para fazer, porque fará sempre tudo errado.
Rodopia a cabeça no eixo do pescoço avariado, caleidoscópio de cinzentos no sentir, tudo sem sentido, heróis só de papel.


“Será que corro o risco de enlouquecer?”, pensará ele. E: “dói tanto que já não é dor”.
O estômago vazio faz um ruído ferrujento de carrocel sem freio, o frio assoma de dentro e torna a arrepiá-lo, mais um andar desperta no grande edifício da consciência.
“Longe de mim a sabedoria”.
“Que farei hoje que ontem não fiz?”
“Que medicamento devo tomar?”
Carlos poderia pensar isto, se tivesse a sensibilidade serenamente afinada para a compreensão da grande confusão de todas as coisas. Mas não tem, não pensa, e por isso pensamos nós, que para tal nos sentimos mais vocacionados. Que se saiba apenas que o pensamento de Carlos, o único que agora lhe assiste, é uma espécie de cavo rumor, talvez semelhante ao que fazem as toupeiras quando escavam os seus túneis. Ou a um motor, a vibrar ao ralenti. Mas é uma vibração árdua e tossicante, que parece capaz de, a qualquer momento, lhe desconjuntar o esqueleto, separando os músculos dos ossos. É como a tortura de um suspense sem desenlace. É mal-estar. É sempre o mesmo belo tecido macio, sempre maculado pela mesma nódoa indelével.
E o tempo passa. O jantar, rumina-o ele em piloto automático, boi mecânico. Alhures. Nenhures.
Sai. Toma um café. Mais abaixo, uma cerveja. Toca o gongo: novo round. A vida são dois dias, o fim-de-semana três. Feliz outra vez. Happy again. Singing in the rain, happy again. Toca o gongo: acordar, acordar, acordar.
Puta de felicidade. Encontra alguém conhecido, está a rir, e algures está um espelho, e por instantes vê-se nele, a rir, o corpo a ondular no sentido desse riso, e nota então qualquer coisa no seu rosto que lhe faz lembrar uma caveira, e assim ri mais ainda, nós vamos conseguir, com caveira ou sem ela, que importa?, empatados ao intervalo, passa a bola, passa a bola!, nunca devemos querer a bola só para nós, isto é uma equipa, não importa que os salários sejam desiguais, hoje vou gostar de toda a gente, toda a gente é basicamente engraçada, basicamente desinteressante, onde é que está o treinador?, acho que vou chutar, vou chutar, vai ser — golo!

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