SEMENTEIRA, por Luís Miguel

Às nove e meia da noite está toda a gente a chegar: lenta a vaga dos corpos bronzeados e oscilantes, lentos copos cheios de frescura, rápidos olhares que se cruzam numa complexa e dúbia esgrima de desejos vários. Carros que param, com rostos e música alta, as motas ruidosas como dragões às voltas na rotunda, e avenida acima avenida abaixo.
Certa vez, talvez aqui, tive uma alucinação: de costas para a porta do café, sentado, a beber uma cerveja, pensei: “se sai agora, virar à direita e caminhar sempre na mesma direcção, digamos cinquenta metros, estarei na praia...”
E a praia mais próxima estava a sete quilómetros. Mas não é disso que aqui se quer falar. Nenhuma alucinação a referir, digo. Tudo isto é real: a minha cidade forçada, a sua imensidão de camas sonolentas ou activas, os inúmeros jogos do grande jogo que a vida é. Uma lotaria. A minha cidade de sonolência activa, onde todos conhecem todos e as raparigas começam a ter os seios volumosos logo aos treze anos de idade, pouca, e sede muita. A minha cidade de activa sonolência, pois, onde uma incrível turbulência de nada parece nascer dos colchões do próprio langor.
“A minha cidade”, penso eu, às vezes, como se não pudesse fugir-lhe, ou como se precisasse de escapar-lhe.
Já veio o verão este ano. Grupos estranhos interceptam-se, inesperadamente familiares, na mesma e maior dilatação de todas as coisas. São nove e meia da noite — as vinte e uma e trinta de todos os apetites que não incluem comida. Vejo aqui as mulheres do meu país, e penso que não de todo impossível que sejam as mulheres mais belas do mundo. Apesar da celulite que lhes surge a par do crescimento dos luminosos semiglobos do aleitamento. Apesar da estupidez, da mesquinhez, apesar do próprio país. E hoje estão ainda mais belas: tez de alma em chamas, e a roupa arejada, abrindo súbitas fendas para o reencontro da carne íntima com os olhares possessos. Hoje e todos os dias deste tempo.

Os carros abertos são como fragmentos vivos de um filme em nome de todas as juventudes. E, perante o verão, os contornos da realidade tornam-se, mais que nunca, contornáveis, ilegíveis. Apetece a bebida como uma cascata, drogas de sublimação espacial, a loucura que nos animais é a sua natureza. Tudo embriaga, numa embriaguez de nada. Apetece cantar. (Apesar da estupidez, da estúpida mesquinhez).
Nove e trinta. E que mais facilitar, nesta noite de diamante, que mais dizer em perfeito juízo?
Estou com um pé apoiado no gradeamento que me separa da estrada. Acendo um cigarro e vou andando, até alcançar outra posição, de onde me é possível alimentar a ilusão de tudo ver, num só olhar; estou a fazer fumo no meu filme, os braços cruzados, a ensaiar a realidade plena da minha futura reencarnação.
E eis que, sem aviso, passa à minha frente um miúdo — um daqueles todo de ganga e ténis, um daqueles que joga à bola em cima dos carros dos vizinhos, provoca enxaquecas regulares nos professores e faz, pelo menos, três colecções de cromos —, ei-lo a passar à minha frente, em passo lento, a devorar com manifesta dedicação uma revista pornográfica. Doze anos, talvez, e duzentas raparigas reais aqui à volta, mas ele não as vê, elas que tão bem sabem o que isso é. A cegueira é só ver outra coisa. E aí vai ele, autómato da atenção, através de todos os grupos, de todas as rodas de rapazes e raparigas em subjectivo diálogo com objectivo, de todos os solitários em busca da divindade erótica. Vai caminhando sempre, transportando, na sua serenidade, a evidência, do que todos à sua volta pretendem. Depois, contornando a esquina, desaparece, rua abaixo. Penso, com alguma ironia, “missão comprida”.
Por certo que não fui o único a reparar nele. Busco sinais. Noto assim uma mão que ainda aponto, um riso que se cristaliza no volume máximo, qualquer coisa de flamejante em alguns olhares. E penso (penso sempre): “o que é a realidade, afinal?”
A existência inclui, em si, na sua origem, a sementeira de todas as realidades? E será necessário um agente de fecundação — um miúdo rua fora a ver uma revista pornográfica, por exemplo (e é bem verdade que até mesmo essas putas em papel são filhas de alguém...) — para que se concretizem as colheitas que se esperam? Ou será um miúdo assim a própria consciência da sementeira?
São dez da noite, e a minha cidade, após estes acontecimentos, permanece a mesma, nem que seja em aparência. Lentamente, os grupos começam a dispersar, para refazerem a noite em outros lugares, com certeza. E eu penso: “está na hora de ir ver o mar, sim, de reaprender a sentir, e depois a pensar; a cada momento inauguro em mim novas sementeiras; o miúdo não vai parar”.
Contada a história, procuro-lhe uma moral. Fá-la-ei, se preciso for. Não vou parar.

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