Vejamos o outro lado, outro café.
Carlos roda a cabeça, pisca as luzes, blip blip, está um velho, um casal 40’s com ar antipático, uma garota de treza, outro velho, duas velhas, toda a gente com cara de pressa para ir a nenhum lugar, cara de pau, cara de pus. É espantoso como há tanta gente de trombas, tanta gente zangada com a vida, as coisas da vida, os bens e os males e os zeros, elefantes à parte.
A pequena-burguesia padece de duas doenças contraditórias: autocomiseração e desprezo por si própria. “Se és um pequeno-burguês, prepara-te: para te libertares terás de fazer um esforço titânico. Esta doença é como um cancro; se queres sobreviver, tens mesmo de querer viver. Muito. Acima de tudo”.
Depois da bica, automática, vai até à sala de jogos. No primeiro bilhar, dois tipos com ar de pais de família. Estão sempre lá. São peritos: os melhores, os que nunca hão-de ganhar o campeonato mundial, nem europeu, nem sequer o nacional, se é que o há, porque nunca irão concorrer, nunca irão atrever-se a subir os degraus da escada competitiva. Têm medo. São bons naquilo, bolas, tacos, tabelas, carambolas, mas só no círculo restrito dos seus amigos, naquela sala de jogos, naquelas horas sem fim em que os dias se igualam.
Na sala ao lado, separada da anterior por uma passagem sem porta, são outros os campeões, outros os amigos na glória, outras as idades. Mas também esses têm medo. Carlos não tem nem um décimo da habilidade nem da experiência de nenhum deles e, no entanto, seria capaz, de imediato (fanfarrona ele, preso em si mesmo), de seguir para diante, venham de lá os campeonatos e os campeões, venham as bolas polidas e o giz azul, e um charuto, fino, foi assim que viu num filme, e whisky, vamos lá então divertirmo-nos um pouco — porque não tem nada a perder e tudo a ganhar, a glória entre amigos e conhecidos é coisa do vulgo, e é isso não haver futuro nem glória nem valor para nenhum deles, mas tédio, só tédio, tédio e mais tédio.
De toda realidade lhe é permitido, porque possível, tiar ilações destas, mas depois é preciso continuar, e assim vêmo-lo passar então à outra sala, no seu passo firme mas vazio, sala-cela onde miúdos de cérebro fumegante, aos comandos das suas naves, das suas motos e carros, destroem alienígenas, ganham corridas de alta velocidade e aniquilam, com algum desdém, grupos inteiros de guerrilheiros terceiro-mundistas. Vê-lhes os tiques, os movimentos bruscos, a tensão nos rostos, e congratula-se, irónico, porque aquele vazio é ainda maior que o seu, e lamenta-o, sem moral, porque não sabe como há-de viver num mundo com seres como aqueles. Mil ruídos electrónicos diferentes entrechocam-se entre as quatro paredes, o fumo dos miolos queimados concentra-se junto ao tecto, e uma das maneira possíveis de respirar bem é tirar a pistola do coldre e começar a disparar indiscriminadamente para os ecrãs hipnóticos das máquinas, para os miúdos (eles vão entender, eles vão adorar), para o velho que troca as moedas e apaga os cigarros no chão, como toda a gente ali faz.
Entra na casa-de-banho, a tensão atenua-se, urina, vê-se ao espelho. Está de óculos escuros, o cabelo solto e com uma boa cor nas faces, ainda bem.
Sai do café sem olhar para trás, tenta não ver (basta ouvir), e os sons vêm todos ter com ele, e ele segue-os. Música, quer música — e depois muito silêncio, enfim.


Impossível. Impossível? Que soe a fanfarra, então. Um quarteirão para cima, outro para o lado, e aí está a discoteca, no centro comercial, o mais antigo da cidade. Cumprimenta o empregado ao balcão: conhecem-se há bastante tempo, só lhes falta terem andado na escola juntos. Vê as novidades. Os artistas, nas capas dos discos, são seres com uma pele muito limpa, e não estão com a roupa velha, nem mal-alimentados, nem velhos. Benditos fotógrafos que sabem os truques todos. Sim, ser artista deve ser uma bela vida: árdua luta, e de repente a fama. Até dá gosto, uma coisa assim. O mundo a seus pés. A solidão, a privacidade, a falta dela. As mulheres, as drogas. As desintoxicações, os escândalos. Ora, quem se importa? Quem se importa de morrer de dor e a sério quando tem o mundo a seus pés?
— Pões este? Nos auscultadores não: para fora. Temos de dar boa música ao povo.
O outro sorri: está habituado a tais comentários da parte de Carlos, que não fazem falta, mas que tornam as coisas sempre um pouco diferentes.
“O mundo a meus pés”, pensa Carlos, enquanto uma guitarra começa a abrir caminho através das glândulas da sua sensibilidade, e então ele descobre, numa visão que nada tem de místico, que a espécie humana não é originária da Terra, mas de um outro mundo, imensamente distante; a espécie autóctone mais semelhante com estes monstros era outra, mas foi devorada por eles, pelos humanos, canibais galácticos, que, vindos por aí fora, eliminaram também todos os outros povos do universo, e que só se estabeleceram aqui na Terra porque este era o último planeta em que ainda havia comida. E assim aqui ficaram, e agora comem-se uns aos outros, e são cada vez mais, e cada vez mais esfomeados, e isto não é nada bonito de se ver, até porque não se sabe como é que esta triste história vai acabar.
Um coro demasiado afinado canta um refrão interminável.
— A música — diz Carlos — foi a única coisa que sobrou do primeiro grande drama cósmico.
— Acontece — diz o outro, que não pode saber do que Carlos está a falar.
— O que recomendas esta semana?
— De discos?
— Sim.
E ali ficam meia-hora a discutir méritos deste e daquela, boas e más produções, grandes e pequenas vozes, grandes e pequenas canções, estas conversas são sempre a mesma coisa, quando se fala de música entre amigos ou é dicionário de referências ou chatice — ou ambas as coisas, o mais normal. E é futebol. E o mistério das mulheres. Chatice.
Depois Carlos sai, sem compra nada — como poderia fazê-lo, se tem tão pouco dinheiro? — e, na livraria do andar de baixo, encontra Luís Miguel.
— Então, que se faz?
— Arejo da namorada, estive com ela até agora.
— Quem é?
— Uma mulher.
Carlos ri. E pergunta, como na discoteca:
— Então, que recomendas?
— A Bíblia.
Decididamente, Luís Miguel está inspirado: é o que faz almoçar com desenhos animados por cima. E ter namorada. E ser domingo. E Carlos pensa que, talvez, um dia destes, lhe conte a história secreta da origem da humanidade. É bem possível que, a partir dessa narrativa, Luís Miguel consiga escrever a história também secreta do seu destino desconhecido.
Entretanto, está quase na hora de jantar. Até logo.

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